08 Divas


Conto Romances Arquivo 08


Divas


A Cidade, recolhida das vaidades, mansa entra décadas sucessivas sem Divas. Belas muitas, Diva nenhuma. Em claustro privado dos afazeres diários, serenas e castas do lar, devotas esposas há; mulheres arredias, o dia gasto esmalte acetona algodão a refazer no vário das cores as unhas das mãos à espera do coronel pagador de contas sob trancas e tramelas, há também; aquelas há de vida sofrida sob o explorar obsceno do rufião vadio nos haréns venais; heteras para milionários, rarefactas: mas Diva a Cidade espera por vir. Se!
Quase villa ainda, chamada A Cidade pelos inflados peitos cidadãos, magica-se metrópole. Dedicada a São José das Botas, perpassada de recatos, cresce por ele protegida, sendo já Rainha da Região, conglobo de villas e cidades tendo por patronos santos cadentes na hagiologia frente ao Casto Esposo e Adotivo Pai. Seus pés, banham-nos rio de pretas águas, tão férteis terras.
Escurão subindo vagaroso no céu persistente marinho cede ao clarolunar, e dele mais s´embebem as nuvens sonhadoras dos sopros de luz dos cornos crescentes que as ruas, breus de folhetim, não fossem as lâmpadas feito lamparina turva de fraca luz no torto dos postes.
Quem não dorme boceja despedidas.
Acordados, em derradeira esperança surja feito estrela de primeira grandeza a Mulher em Maiúscula na estúrdia do poeta menor, persistem nas ruas mal luzidas os Noctívagos. Ruas de paralelepípedos molhados, não pela névoa fina que aqui não há, mas pela mesma tontice do poeta insistente, ainda assim românticas ruas quanto o são os Noctívagos, filhos dos abonados da Cidade, em aprendizado de um dia tornarem-se eles abastados chefes por sua vez.
Companheiro deles, o calor. Este, não há brisa que o afugente.
Por enquanto aguardam bata a matriz, Catedral, as onze em seus desafinados sinos, avocação para aventuras mais arriscadas: sem gravidade maior, singela variante nas modalidades do aprendizado.
A Catedral é torre ebúrnea no ébano das madrugadas. Diria o poeta, em tom menor a pastosa voz.
A Cidade tem Catedral.
Majestoso São José, ubíquo no altar mor e no lateral em nicho especial, é dele a morada principal da Cidade, a Matriz Catedral, centro coração de forte pulso a bater regular rumo à eternidade.
A Cidade tem Catedral e praças, e praças tem três alinhadas em reta, dizem os antigos muitas mais teria tido cortado assim o Centro ao meio por um imenso jardim, a Catedral na praça principal.
A Cidade tem Catedral e praças e cinema, armazém de sonhos em latas protegidos; o escurão vagaroso invade a sala ao som do gongo e a cortina abre-se vermelha ainda na penumbra atingida a tela branca pelo jato das fortes emoções desfeitas fronteiras entre sonho e vigília: rediviva e loira, a Diva dá-se ao prazer da vista. Da fita celulóide pela imprecisa luz molemovente bailam na tela o fulgor dos seus cabelos nos ombros desnudos, lábios de bâton recheados beijos selados na palavra fim. Some, repentina, desfeito o escurão.
Hoje, acesas as luzes não se adensa a sensaboria da realidade: ela estava lá:
Divina.
Levanta-se e sai, de braços com o amado, a criada e única amiga ao lado.
Os Noctívagos provam o gosto de sua presença, e a amarga despedida.
Os Noctívagos, a branca pele de amantes da lua, olhos acabados de acordar, sonolento tédio das tardes vagabundas, os Noctívagos a quem a vida se desdobrou fácil, sem desmaios dos sorrisos facultados pela fortuna dos pais abandonam os compromissos dos quais se ocupariam: depois das onze, antes de o dia clarear. A diva, não sabem onde minha vida andará.
Sei o ermo das quase-divas de ferrolhos nas portas destrameladas janelas onde moram; na vida perdidas sei onde ficam as zonas proibidas; desfez-se na luz a Diva que meus braços anseiam dados aos seus permanecer, gemem na noite indormida os Noctívagos, jacinthos pouco adônicos narccisos emurchecidos.
No banco do jardim da praça resolveriam, no tempo dos sonhos em acalentada espera, no palito a conta da cerveja a ser bebida desocupados entre as mulheres no vadio da noite. Buscavam junto delas não mais que o prazer de beber ao som de tangos e guarânias, ojos en el reloj, barco lento das horas; aos da carne reservavam-se exigentes quanto podiam: as mulheres mantidas pelos amantes abonados, os senhores de vida abastada, fazendeiros médicos engenheiros comerciantes conjugando prosperidade.
Noctívagos, madrugada vinda era cúmplice a lua pálida a torná-los todos pardos, cautelosos passos, antes de o claro ressurgir aurora, retirados os senhores abastados diretos para o repouso do Lar, saltavam a janela e serviam-se em leito quente do amor ainda há pouco ressumado. E, nas camas de cetim bordadura em franjas eram o Sol.
Contentavam-se com o brilho menor das mulheres quase-divas. Compraziam-se em ser espertos. Provado pelos olhos a existência do melhor não aceitam o pouco oferecido mesmo que de corpo e alma por amor em graça doados.
Diva, pensamentos vagos sonhos claros. Querem-na de primeira grandeza.
Na lateral da Catedral o jorro da cerveja tomada no bar.
Na Matriz, noite alta a vela tremidas chamas entre as botas de São José padroeiro, do fundo do peito ardente de fé Cônego Damiano impreca dobrados joelhos viva ele ainda longa vida e veja, no lugar da velha igreja onde agora ora, seja ela derrubada e construída imponente catedral; só então morra eu em cumprida missão.
Quero cerquem-na vitrais, laterais furados de luz nossos santos ancestrais em modernos traços, dois átrios numa só igreja em dois pisos separados; num menor e súpero as recolhidas missas e noutro maior e ínfero a missa para multidões. Sem teto, laje de cimento onde estacionem centenas de automóveis filhos do progresso, do longe quantos vierem reverenciarão a obra máxima da arquitetura a serviço do Senhor, meu Senhor!
E uma torre enorme campanário acima dos arranha-céus a vigiar dos viajores os passos; zelar pela tranqüilidade de nossos filhos, virtude de nossas donas.
Se de repente um susto: Tão oneroso seria aos cofres da paróquia edificar a Catedral projetada; salta-lhe na idéia um brilho, salvador: Para construí-la cederemos ao povo jazigos distribuídos em gavetas pelos andares da torre, relicários familiares guarida dos queridos ossos aguardando os clarins da ressurreição. Os cristãos das catacumbas faziam seus locais de oração como nas fitas superproduções de colorida reprodução histórica onde se vêm confrontadas fé e morte; quanto no século passado enterrados junto ao solo santo dos altares ou subsolo deles as criptas os bons dentre os comuns, memórias presentes ainda nos mais velhos viventes. Os jazigos gavetas nas nuvens altos encastelados mais caros por eles pagariam os familiares enlutados.
Um trovão confirma ao Cônego terem os céus ouvidos para suas preces; aos Noctívagos confirma chuva e a raiva de mais cedo se recolherem a casa.
Um dia será atendida a Prece do Cônego. Como hoje, parece vinda dos céus atendidas preces, surgira a Diva verdadeira.
Até então por seu amado oculta dos olhos cobiçosos mantidos fora, altos muros deviam cercá-la flor beleza de cioso culto, vera diva, suaves cores delicado perfume.
E seu amado, que num ermo rincão a mantém escura para ávidolhares, é o dono do novo Cinema, o Senhor Damastor. Do Cinema dono e senhor da Diva, sonho de todos nós. Descobriram isso os Noctívagos, pois foi ele quem com ela se levantou ao final da sessão; e descobertas outras não fizeram por mais sagazes fossem. Retorna sempre nas terças-feiras, no passo justo do recorte do vestido, e o decote, promessas de ser pandora de segredos fatais mas no fundo a felicidade mora, onde mora a Diva descobririam jamais.
Repetem-se múltiplas as terças-feiras.
A última sessão era da Diva.
Luminosa ela ressurge de braços com Damastor, segundos antes do apagar das luzes tanger do gongo entreabrir das cortinas, estrela de total grandeza olhos de resplendentes raios, as carnes seda em seda revestidas e os cabelos de ouro puro embelezam as fitas, empresta brilho às telas, anda ao passo no justo do vestido as promessas de felicidade no fundo, ela vem Diva de sonhadas décadas, no escuro pressentida por descompassados corações: os Noctívagos pelas poltronas distribuídos formam círculo, ela no centro de um lado a criada e única amiga doutro o Senhor Damastor, dono do cinema e dela, amor escondido nas trevas da sala.
Acesas as luzes desvanece a Diva. Longe andará, de braços dados, pressa de namorados.
Desmaia-lhes o sorriso, o corpo faz-se mole. Passam o dia acordados. Reviram-se na cama entre os suores do sol escôo do calor por entre venezianas frinchas para os sons vizinhos de enfadonha repetição, o ardor de tê-la nos braços dados a certeza de não saber onde mora a encarnação de seus desejos.
Mora, quem sabe, para além das telas envolta em cetim, dossel em leitos arredondados, paredes acolchoadas e geometrias impossíveis a decorar as portas abertas para o Senhor Damastor e cerradas para os ressentidos. Nesse cômodo de infinito pé direito a criada, única amiga, arruma com delicado carinho peça por peça as saias e blusas amadas que de combinação com o colar de grossas contas e sapatos de fivelas douradas levá-la-ão passear e à calada pergunta, em qual rua? Podem as sandálias arrastá-la, Diva em luz tecida, para Longe um dia. Repostas mudas, imprecisos delineamentos na mente da criada
São José é indiferente à própria morada por carpinteiro pobre hóspede de estábulo fugitivo no deserto, encontrado outrora em choça de índio nos pés as longas botas feito desbravante abridor de matas, Indiferente à rapidez dos gulosos passos dos séculos deverá atender os pedidos do Cônego Damiano com mais veemência feitos agora no intuito de fustigar da mente os verdes olhos de Olga.
Clero e comércio fecham acordo e ofertam à Cidade sejam renovadas suas feições, mercê dos anos de vida e riqueza amealhada.
Praça e Catedral na mira do progresso. Os corações da Cidade.
A postos escavadeiras e bate-estacas, exército de peões. Canteiros de flores revirados em canteiros de obras; árvores de raízes desgrenhadas aos céus clamam pela igreja violentada:
Catedral qual velha empalhada, desbotado azul na pintura cadente feito rugas enviesadas, desalinho nas vestes um dia celestes a cobrir os murchos restos de sofrida vida terá seus dias contados:
A marreta cairá sobre os vitrais. As delicadas flores das guirlandas aguardam despetalar-se em lágrimas de pó. A clava de ferro arremetendo-se contra a torre, pela última vez tocarão os sinos; desprendidos cairão os tijolos assentados pela esperança de eternidade.
Era uma vez fatal, a estrada de ferro rompeu com o alinhamento das praças e fez das múltiplas sobrarem três, onde era praça pulmão infectas pensões hotéis estação escura charretes de aluguel barracas de frutas cheiros confusos profusão de gente e mala infestam. Para lágrimas do barbeiro Amandio.
Dia virá. O sonho de seu irmão Cônego Damiano acordará na realidade de um pesadelo.
Sem data marcada.


Arquivo 08 de Conto Romances
Paulino Tarraf

versão de 30/09/200 a partir da versão de 30/03/07 calcada na versão de 27/03/07 calcada na versão de 26/03/2007 calcada na versão de 25/12/2004 calcada na versão de 12/02/1997.

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