Conto Romances Arquivo 016
Ama
Se chamassem Gertrudes, Julieta viria. A contragosto, viria. Meu nome prefiro Julieta, nem dessegredo do batismo o verdadeiro para não incitar humilhações dos contrários. É Julieta florido leve brisa perfumadas juventudes, lembra graça no andar meneado em risos, coração contidos romances de trágicos amores. Nada disso contém Gertrudes, fadiga e fardo, nome dado por Benedito Rui autor ao graphitar rascunhos sobre ela. Talhados rascunhos minudentes despedaços dedica-se escritor ao texto, almaços de página inteira, com sabor de obra-prima pela qual gostaria de ser lembrado. Não fosse Flaubert fazer-lhe sombras com o coração simples de Felicité, nascida e morrida empregada em Três Contos. Adoraria, Benedito, dizer Flaubert c’est moi; não pôde e Gertrudes recém-nada foi para o balde de zinco postado como lixeira para seus escritos. Ciosamente a Mãe recolhe o almaço, lido gosta e guarda. Leitora única, tão bem engavetou o texto sobre Gertrudes, que nele ninguém tocou dele não se fez leitura e no esquecimento amarelou; fosse Benedito autor desse Único Conto ninguém dele se lembraria; se alguém se lembrou.
Nem de Gertrudes, vida dedicada a Vina, ela sim menina de olhos violeta, perfeita julieta das primaveras frescor de brisa sorrisos, amores nenhuns, e os meneios graça de gestos postura leve das mãos encanto silente, assim dos lábios sem som fluem imagens advindas nos sopros do sorrir, sonatina de delicados acordes, suave harmonia ricas tessituras singela melodia.
Muda não surda, Vina, animados encantos gentis movimentos, perscruta nas falas espontâneas na irresolução das pausas nos descuidados gestos das gentes manar dos corpos o calado profundo, para além das falas os contraditos desopressos escuta. Dos humilhados e ofendidos sabe as necessidades no cascão do orgulho incrustadas, Vina, muda não fosse ainda assim, cala-se. Mas supre.
Gertrudes, sob constante sonda dos agudos olhos de Vina, mantém segredo nenhum, transparente sente-se. Contudo, quanto pode, oculta ser Gertrudes contida Julieta.
Se por dentro Julieta às voltas inteiras dos ponteiros na dança das horas é, nas horas vagas põe-se Gertrudes de travestida Julieta ao espelho de corpo inteiro. E vagam os ponteiros nas ausências de Vina, misteriosas ausências de quem até então conhecia inclusive as divagações de pensamento, assim presumido.
Vina desaparece no silêncio e, repetidas vezes, recolhe-se em seus aposentos horas inteiras, dias quando não semanas. Gertrudes sabe o perigo de incomodá-la. Vertem serpentinas chispas as verticais pupilas, rubor na face lábios de ira, melhor morrera que desamada quem ama sem fronteira. Então aproveita, quando Vina se tranca, abre Gertrudes as portas da liberdade para ser Julieta.
No espelho. Frontal. Despida Gertrudes recompõe-se Julieta.
Desde Vina criança gostava a Ama de usar, escondida, os adereços da menina. Contentava-se com as fitas de cabelo entrelaçar aos seus, cós de cintura feito lenço no pescoço acocha, colar faz de conta ser pulseira enrola, anel do indicador só no mindinho cabe.
Gertrudes vira Julieta revirada Vina.
No espelho. Mira-se Gertrudes Julieta refletida Vina pretendida .
Hoje Vina corpo de mulher, servem no corpo as roupas com reparos de improviso, ajustados busto e cintura no gancho de alfinetes, Julieta roda a saia sem a graça com que se mira. Os sapatos segredam-lhe ser de cinderela a desajustada irmã, mas tão lindos saltos dão-lhe a sonhada altura, esquecidas dobras no calcanhar.
Afinadas convivências, Gertrudes sabe quais dias da semana tranca-se Vina por mais tempo em seu apartamento recolhida. Geralmente quintas entra noite pela madrugada na sexta não vê o sol das manhãs quiçá das tardes. Após o banho de demorada imersão, ressurge Malvina amante da vida no frescor desenvolto dos gestos, nada quebra o silêncio selado pelo lindo sorriso.
A rotina altera quando da Cidade chega o patrão Damastor à Capital, a Senhôra de braços, mala de presentes, certeza de passeios. Se viajam a São Vicente para banhos em Chora-Menino, na Capital Gertrudes fica Julieta ao espelho ou de gabardina de lã saia e casaco justos de apertada cintura luva de renda descalças nas mãos de grosseiros e menores dedos colbaque na cabeça, Julieta passeia demorado pelo Arouche ou Barão, vai ao Municipal e não entra, percorre nas Casas Americanas os departamentos experimenta calçados chapéus e sonda nos perfumes a fragrância para a melhor hora do dia e nada compra, porém mostra-se senhora de fino-gosto preciosa origem e bom-trato. Sonha passear no Triângulo, não fosse tão longe e o bonde, democráticos assentos, impõe-lhe operários por companhia.
Fora isso Vina pouco muda. Exceto uma vez, segunda de manhã, ficou recolhida e por três meses mais freqüente no apartamento conjugado trancava-se quando uma carta deixou por baixo da porta da parede-meia, e nela disse escrito que viajaria por três dias instando segredo e, lidas estas linhas rasgue empós; ao voltar nenhuma pergunta admitirei, caso de vida ou morte, de tua morte Gertrudes!; portanto, caluda!.
Esbaldou-se em ser Julieta. E o Triângulo receberia suas vistas, iria a pé de braço com a felicidade.
Foi, na casa, patroa dela mesma e sentiu na pele a ruindade em pessoa. Nunca limpou com tal esmero, o escovão no assoalho encerado brilho de apelo comercial. As panelas, fulgor de alumínio conseguido com areia de rio. Lençóis lavados a mão, perfumados estendidos na cama vazia de Vina, pensou que jamais fora mãe e, se algo acontecesse à sua menina a morte não lhe daria o descanso merecido para quem viveu tanta faina. Onde andará!, proibida de falar pedir ajuda, aguarda esgotem-se os três dias; lava passa esfrega brilha, não cozinha pois não come e, água, em goles descidos com dor contricta garganta.
Para compensar as tardes corriam lentas na Dulce Confeitarias, chocolate no ar açúcar em cristais, o violino derrete-se em romances, lugar onde uma senhora desacompanhada não é mal-vista e o broche de pedras confirma boa procedência. Não lastima o desacompanhada, desde não serem os homens príncipes a fazerem da companhia um ameno divertimento. Jamais ser mãe. Inda fosse de Vina não teria tolerado, passiva a um homem submetida, a indecente posição a ferir o decoro de uma mulher, pórtico aberto para a brutalidade masculina, fardo e fôlego, a fazerem de um corpo delicado a seara para sementeiras de cheiro duvidoso. Damastor, quem sabe nos braços dele quebraria o rigor de minhas carnes. Ele, entanto, mal vê quem não seja Vina. Sua virgínia, aurélia em casulo de seda, solta borboleta quanto menos dela suspeita seu protetor.
Vina ficara fora um dia a mais. Tanta dor arruinou-se em ódio. Suspeita não ser muda a menina; o traço que se descrido inutilizaria nela a honestidade.
Assombram-na os pensamentos vindos a pouco e pouco, mal feche os olhos na tela escura estouram fachos de luz e toma forma por conta própria o enredo narrativo; sucessão de eventos remetem a uma Vina heroína do amor reviço no tédio cura para a sensaboria da rotina, Vina de múltiplas vidas, enfermeira da cruz vermelha, bailarina em casas de baixa moral sítio lamacento de desajustados, cortesã de alto luxo explora nos ricos a avidez pela carne, grãa fina da nata social de elegantes cigarreiras em cujo cristal as carreiras de cocaína concedem sonho e energia na aspiração gulosa por novas fronteiras, e o éter na vertigem da cidade entre tangos e mentiras o fascínio dos perigos; mulher caridosa a percorrer as ruas nas frias madrugadas munida de cobertores e sopa socorro dos desabrigos, florista de bela voz a explorar a ingenuidade de vadios, amiga de anarquistas a lançar bombas caseiras ameaça a pacacidade de cidadãos bem-postos, oradora em praça pública por ombrear homens e mulheres; Vina, entre luzes e sombras muda na face as exigências do papel; e a persona cria-lhe superposta nova alma. Gertrudes passiva contempla com emoção desmedida a força do desenrolar dos episódios.
Tenho certeza, diz alto para o espelho despindo o chapéu em alfinete preso e a blusa, Malvina fala!:
Finge-se muda para prender Damastor em aranhol de finos fios, para o nós ela é império do recato; embora e muito! nos meandros da cidade não é distinta entre os anônimos de encoberta leviandade.
Presumo.
Calo-me.
Arquivo 016 de Conto Romances
Paulino Tarraf
Versão 10/10/2007
Versão de 29/09/2007 sobre a versão de 01/07/2006
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