014 No Sebo

Conto Romances Arquivo 014


No Sebo


Enfileirados, nas seguidas prateleiras com seus nomes desbotados, jazem os livros à espera de serem, se não levados pela febre de leitores devotos, esquecidos a descobertos no mau tempo, carcomidos. As estantes estreitas e tortas, pesam os grossos volumes e neles a poeira assenta-se como reparo de retornarem ao pó os quantos vivos se proclamaram eternos um dia.
Christiano, é fundo perdido o dinheiro nos sebos, sem rostral de capas rotas folhas amarelo quase-esfarela, traços de visita nos buracos as tíneas devoram analfabetas das letras, indiferentes às frases mais lindas gravuras as mais singulares engenharias, em seqüências de páginas constroem galerias bonitos de ver os vazios do saber; é fundo perdido os gastos em bobinas de filmes tanto devoram uma refeição ao dia e entre livros passeia Christiano quando não as casas de velha alvenaria pedem foco nos arabescos de suas telharias, nos frisos de suas cimalhas.
Phothographo, a câmara poliphemo implante cravado no corpo, não à testa feito terceiro olho, é primeiro visor contudo, tão vital quanto respirar é sentir dos sais de prata urinitratos-quase o cheiro, quarto escuro de vermelho tinto e na bacia aos poucos sobressai-se o reboque de um muro o cão de uma calha no beiral de um telhado a virada de esquina o beco como saída e no ruído fundo vulto escuro do luar inverso os solitários clamam pelo punhal redentor, as gentes anônimas sempre nas photos inanimadas para o desconhecido vão ou para o desconhecido voltam, e Christiano afiadas lentes requer mais potentes sejam elas além de penetrar e captar o momento, quer viajem atrás no tempo desrefolhem as vidas passadas, Príncipes e Marquesas perdidos no leito entre as delícias do pecar ao trair redimidos por amar. E saber, por deceptivo, que os retratos retratam nada assim como a memória é o vago luzir de um ângulo escolhido e deformado pelas lentes d´alma.
As lentes impotentes.
Quem há de a vida fixar. Ávida de futuro ri-se ao célere passar.
Nos sebos livros recheados de gravuras, sobras esquecidas das traças, em espaço amarelurina: o tempo marca-se nos estragos deixados, imperativo, mais um pouco e nem estrago sobra.
O valor da photographia é o fato na photo nascido; da escrita o ato de escrever.
Nos sebos os livros, pobres textos crédulos de fazerem, eles sim, os registros; haja poesia quando mortos os poetas restam os crânios vazios das febres com que um dia, insanos, tinham a certeza da verdade fixa. Nem poetas nem poesias, nem imperativas as lentes ou o sujo da caneta cheiro acre de tinta lembrando dos cadáveres a putrefactavicta. Lentes, focos oscilantes.
Gravuras lindas inda assim distorcidas; o presente derruído, o passado célere a derribar futuros, memória do por vir sem se consumar.
Resta andar, sem parar, aguarda Christiano ao final da madrugada, aurora, o sol em risos despontado, color-de-rosas o jardim do dia nascituro.
Resta-me andar e procurar as marcas belas por entre as ruínas da cidade, cicatrizes tecidas nas hesitações do progresso, cidades sob cidades desconstruídas, sem parar. Sem parar.
Aqui ali uma cornija de friso clássico e a data que situou o edifício na modernidade hoje atesta mais de século passado.
Ladeiam as ruas avelhentadas casas, entre outras encerradas, opulentas outrora agora o portão enferrujado convida a deixar a esperança fora:
A Marquesa no leito solitário da Consolação.
Cidade eterna, mais que roma, dos ciprestes a prumo e as cruzes e os jazigos a paz enganadora pois inertes os corpos na morte afligem-se as almas dos vivos se por suas alamedas percorre o medo de não saber-se a hora última mesmo naqueles a pedirem antecipe Deus o sofrimento deste mundo fica interrogado o que no mundo além os espera. O medo renasce.
Marquesa num quarto escuro sem frestas por janelas, quedos os rumores vizinhos num leito sem alvorada um corpo dorme para o medo da morte, quieto de sonhos, vazias órbitas dão mudo testemunho de que, ao longe, nos prédios por sobre os muros destacados, a vida febril destabocada e célere caminha para cá.
Campo dos desencontros e equívocos, quantos, desenganados da vida suposta cornucópia, choraram em desespero seus mortos agora aguardam eles os que os choram mortos.
Museu de vidas sem registros. A quantos o punhal rasgou doendo a carne hígida, a pólvora às entranhas sedenta queimou ardida, o veneno corroeu no sangue o brilho vítreo que corria. A quantos a própria vida em pacto com a morte traiçoeiras realizaram dos sonhos apenas os disfarçados pesadelos neles embutidos fragmentos.
Christiano quis photographo registrar do passageiro da vida o que eternidade for; comprovante de serem suas laicas lentes impotentes para dominar do passado a presença constante no futuro lançado em frescor, entre nafta da luz escondida na gaveta amarela a photo, que também tem vida por si envelhecida, carcomida, esvanecida, morrida.
Á frente o túmulo de Militão. Troca as lentes num rodar da objetiva, engatilha o foco e rouba a luz que sobre a laje pairava entristecida no cimento marcado dos rastros do tempo, quebradiços na lisura irregulares ranhuras tijolos desnudos entre eles a grama que se infiltra em persistência distraída, o vaso caído as flores de plástico a água derramada sobre o pó redesenha-se uróburos em riscos cabalísticos; uma após outra a esmo vai batendo as chapas que sabe, de antemão destinadas, como nadas, ao desprezo.
Quem vem lá?
Os amores da Marquesa, em algum lugar desta Cidade, em leitos solteiros dormem saciados da vida em noite eterna, jamais interrompida pela aurora de rosa vestida.
Sair pelas ruas em determinado rumo à procura de os encontrar, da Marquesa os amores passageiros.
Ficaram os amores e a vida passageira nos séculos passados, haja gaveta e nelas espaço, os repletos baús, quão longe estarão pois tão perto ainda minha cansada vida em apenas uns anos vivida tantos fragmentos perdi; não há photogravar ou memóriapinçar senão que os fatos esparsos, trocados personagens dos dramas sempre iguais.
Quem vem lá: Um alfaiate cercado de música e solidão pontuada por sua machina a cantar na costura os diversos fatos; se acredita nas vidas passadas sem nunca ter vivido outra que não as remotas pretendidas, sobre a mesa branca da memória a agulha perpassa a linha; Christiano batiza-o Raphael, e dele vale-se para os romances contar, retalhos cerzidos.
Quem vem lá: Um frade de esgarçada batina empoeiradas sandálias, o cordão fieira de nós o rosário da cintura pensos, parece de longínquas datas egresso o tempo sem mistérios para os olhos que viram dos fatos os relevos e das emoções as tessituras, monge de alquímicas sabedorias percorre os séculos para redimir n´alma os pecados supostos. Ao frade desconhecido Christiano batiza Fra Lopo e pretende com ele pelos séculos perambular em repassados passos, sem rumo a construir a Imperial Cidade e delas os romances.



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Paulino Tarraf
Data versão de 21/10/2007 sobre a versão de 03/12/2006

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