03 Prazo e preço fixos

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Prazo e preço fixos

Loja das antigas, antiga de ter dono e nela trabalhar o dono duro e dedicado.
A mão esquerda protege espinha e rim, a direita destranca em solavanco a porta de ferro, enrola-se ela desenrola-se ele ambos para cima, e de dentro amornado bafo desprega-se das fazendas multicoloridas em peça e retalhos alpaca brim seda linho e algodoim ordenadas em prateleiras de madeira o balcão, dispostas miudezas sabonetes enfeites perfumarias e talcos em fiteiros por vidros protegidos, abrem-se à vista para ele. Como todos os dias, nesta Segunda igual.
Entra com orgulho na rotina gostosa laborioso dia: balcão a peroba lustrada, metros medidos tecidos cortados tesoura em punho, ágil sobe escada das prateleiras desce rolos de fazenda nas mãos equilíbrio estável, piaçaba e espanador sorridente se das ruas o carbono insiste moderno escape volátil de gasogênios fordes bate no arabesco do vidro em moldura mogno, ele é, atrás da Registradora entanto, permanente sentinela:
Um tranco e tilinta o troco.
Hipermétrope incipiente e leve astigmático: venderia saúde não fosse a suspeita de alguma novidade nos rins, e fraqueza moderada em reservadas partes.
Uma guerra além mar feito febre influencia o globo ameaçando pelo mar e ar derruir fronteiras, um medo mundial.
Aqui dentro paz imperatriz: aos olhos do dono o dia desenrola-se num tempo fito.
Substituto dos burros lá fora o bonde guincha elétrico, rival dos furgões a buzinar estrídulos entre rolos de fumo, compassadas as charretes faíscam os paralelepípedos de ferraduras e arriscam disputar passageiros a preços menores e conforto de assento. Os burros descansam.
No soquete a lâmpada de quarenta velas, difusa luz.
Outras lojas perdem-se em sociedades anônimas, diversos donos da mesma matriz em filiais dispersas empregados vários. Nelas balconistas de calça azul camisa branca de colarinho duro manga comprida, tesourinha desembainhada do bolso de moedas picota mostras do tecido, sempre na porta prontos a sorridentes servir.
Aqui, não. À porta gentil Manequim de papelão dos ombros cavos ondulada em toga grega a casimira cai macia a beirar o chão, olho azul e rouge rosa namorica o transeunte e, se entra freguês, mesureiro o dono cerimonioso meio sorriso encaminha o bem-vindo até a peroba de rebrilhante uso: desdobra a fazenda aos olhos do freguês em mostra e polimento.
Garante o dono, pela presença, a qualidade da mercadoria. Tem um só empregado. Moço aprendiz, de Balconista chamado. Pontual. Honesto. Limpo. Educado no trato.
Admitido o balconista afastou-se, dono, para trás da Registradora donde nada fala de tudo que vê astigmático e hipermétrope leve. Gosta do Aprendiz acariciar a fazenda com volúpia, olhos fechados, os quadris colados no balcão, suspiro contido; como eu fazia nos meus começos, pensa o Dono compreensivo.
A Registradora, sua nova diversão: no ato do troco a um toque abre a gaveta automática que delicada afaga-lhe a barriga com dois leves sacolejos. Ajeita o ventre estufando-o ao encontro do alcance carinhoso. E pausado, com pequenos socos leves e lentos, devolve a carícia, conta as notas de troco retiradas num repente da mola que as prende no escaninho, as moedas de cobre pelo uso reluzem feito ouro, num sorriso repassa ao freguês, e decidido arremete o ventre fechando a gaveta de vez.
Empregado, um. Fregueses, muitos. Para varejo e atacado. Antigos, de crédito seguro; novos com recomendação.
Abastados fazendeiros do interior, com suas manteúdas, para compras milionárias. Cabelos d'ouro e dentes madrepérolas esgarçadas, sopram gritos finos satisfeitas da vida por mostrarem-se em público com seu amor de meia-idade. Encandeiam-nas o reluzir nos mostruários protegidos de vidro perfulgentes pares de brinco, pulseiras entrelaçadas a colares de várias voltas de pérolas gigantes a rivalizarem falsas com o vermelho rubi da jóia rara nas pedras incrustada em aros baratos de caros anéis. Seda chinesa, pintada à mão no Brás. Tudo meu, tudo meu dizem a boca de bâton às criadas discretas. Sabonetes de paris cheiram perfume nos estojos esmaltados, o pó de arroz impresso francês na redonda caixa renomada marca.
Também do interior os libaneses, mascates de bigodes turcos. Pois a loja tem, com orgulho e satisfação, preços módicos e ofertas de ocasião. Na peroba lustrosa descansa o metro de pau amarelo, vizinho da tesoura gigante. A escolha recai sobre os retalhos. Brim cáqui sanforizado, chita e chitão de cores firmes em padrão original, garantias de não encolher, certeza de não desbotar, arrematados pelos beduínos das verdes roças do sertão, deixarão o cheiro da fazenda nas salas de chão batido de terra e bancos de pau. Entram em caravanas de patrícios. É questão de preferência serem, as compras, feitas aqui e não na Vinte-e-Cinco de Março e imediações dos primos entre si. Malas em corcovas nas costas carregam dedais agulhas linhas correntes e retrós, espelhinhos com redondos retratos de jovens enamorados os cabelos em ondas cercadura de rosas ou ovalados com estampas da Senhora Aparecida em manto infinito de estrelas brasidas, os brincos e colares de menor qualidade para mascatear e, nômades sem oásis, abastecer de belezas a vida roceira dos longes daqui.
Dos bairros, as donas de casa ou suas domesticas, freguesas dos trocados, levam outros miúdos e dedos de prosa. Botões. Colchetes. Ramonas. Alfinetes. Murmúrios.
Mas advogados; e até médicos; gravata e linho ingleses. Chapéu, especialidade da casa desde quando, porta para armarinhos, recém casado herdou do pai e fez crescer, bom filho, o negócio nas marcas prado ou cury tanto faz desde serem de qualidade superior. Sua dedicada mulher, então, sentada agulhas em ágeis movimentos, preparava o enxoval do filho que, desígnio de Deus, não tivemos. Ainda hoje rara vez vem senta tricota e conversa. Freguesas, de chapéu e luva estufada nos grossos dedos de prosa rala .
A guerra d´além mar lançara, nos tempos antigos, estilhaços de crise porta roliça adentro. Sofrera aborrecimentos. Noites de sono perdido. A crise da Guerra explodiu Carestia sem igual. Faltaram farinhas, faltara pão. Açúcar e óleos racionados. Câmbio Negro. Em suspeitos armazéns comerciantes escondiam sacarias à espera de preço melhor.
Ganha-se dinheiro na crise quem sabe trabalhar; sussurrava, em bigode retorcido, um primo irmão de seu pai.
Rareados os fregueses, o Dono duvida saber trabalhar. E sofre. Sem sociedade anônima com quem dividir a dor e o desgosto.
Os filhos que Deus não deu, agora se alivia de não ter. Deus é sábio.
Envergonhado de empobrecer, são reais demais as noites de insônia. A dedicada mulher, carregada de preocupação, levantava-se pronta a servir-lhe chá, a ele que detesta chá: bebe que faz bem! Bebia e dormia, pouco e mal. Selecionou melhor a freguesia: vendas a prazo só para os de reconhecida reputação. Preço e prazo fixos: noites sossegadas e melhor dormidas. Mas a crise ronda. Quando não as febres as bombas dos italianos anarquistas e a cidade furada a balas por militares revoltosos.
E os roncos da Dedicada. Mantidos mesmo após os golpes de cotovelo. Ela caso acorde e, rápida com a chaleira, perdesse ele o sono servido, volta a roncar.
Acostumara-se com Dedicada, difusa na malha do dia-a-dia tecido de certezas. Pasta de dentes à esquerda, no armário, ao alcance sonolento da mão. Guarda-chuva na chapeleira chapéu no cabideiro. Chinela ao pé da cama, ao lado do urinol. Dedicada para o necessário.
Se ronda a crise, o cotidiano nas costumeiras acalma-se.
Tome chá.
Cinema aos sábados, no Centro Velho, para onde os levavam os calmos pés.
Pelo Chá.
Viaduto de orgulho cidadão. Dele olha o perfil metálico do Santa Ifigênia lindo e necessário caminho inglês a ligar o velho ao novo, os Campos Elísios dos palacetes ricos e assobradados.
Deliciosa noite fresca, dizia ela na ida, os olhos no firmamento, onde reinam silêncios do futuro.
Filme lindo um pouco triste dizia ela, emocionado olhar no vago firmamento onde reina o silêncio das telas e fátuo-fogueiam Ator Atriz aos beijos de lábios fechados.
Charrete, na volta, as ferraduras faíscam nas pedras.
Abastecido de sonhos, o Dono trocava-se para deitar, os olhos dela cândidos baixavam-se ao peso dele sentando-se na cama, os pés soltos dos chinelos, suspira apaga a lamparina deita suspira. Mas sempre demora um pouco para começar. Devagar as mãos pelos quentes das próprias pernas. Nunca dei nome para o meu querido, agora na palma da mão, pensa com seus pêlos. Os meninos amigos de quintais e baixadas do Itororó, batizavam nomes de zézinhos e joões aos queridos seus, meu querido jamais recebeu nome algum. Meu Querido tem real grandeza. Mas se aprecia o tamanho, desgosta-o a firmeza: acreditava melhor desempenho em passadas ocasiões mas, enevoada lembrança, confundida com a ida ao lupanar na aurora da vida juvenil carregado de medo e, quase no colo da experimentada dama dadeira, ser levado para o quarto escuro de perfume difuso e mofo intenso, cândida oferecido corpo em quenturas abertas à saciedade, enorme prazer e inesperada gonorréia. Sulfa e muito medo levaram-no curado e quase virgem ao casamento. Quiçá a firmeza em seguidos anos de casamento emurcheceu-se no sagrado de todo santo dia e, hoje, sobra pele na verga pressentida no cinema ao ver a luz bailar na tela a loira em trajos de fatal vampira curvar-se à pressão do astro valentino. Pronto! o Meu Querido. Mas Dedicada dorme e, contornados roncos, para ela voltado o corpo de preguiça, acorda-a com pequenos beijos.
Aos sábados, Dono e Meu Querido dormem bem. Leves carícias, beijos de lábios apertados.
Nem tão bem dormir nas noites dos domingos. Segunda, saberá Deus o que vem lá.
Aurora consumada, a porta de aço enrola-se cilíndrica mas, hoje, a segunda-feira não foi igual às outras. Nem a vida.
Segundas de manhã, quem entra rápido olha, rápido sai.
Amortecido tempo.
Atrás da Registradora um suspiro; outro no balcão. Ressoados no vazio.
O Balconista, olhos semicerrados, redobra fazendas no tampo de peroba. Deliciado desliza sobre elas a palma das mãos e, ao ritmo cortado sucedem-se a cócega da renda, a finura da seda, a maciez do algodão. Suspira. Pedaços de melodia recortam-se por entre a electrostática do rádio; o habitual.
Locutor de grossa voz dá o prefixo das ondas longas em megahertz.
A válvula cheira o tango em bandoneon, romântico comparsa da estática atmosférica, chia o canto em baritonado tom.
Entra a freguesa dos tostões: Dois botões, de diferentes tons. Grampos pretos meia dúzia, nada mais além de conversar: sem ter com quem sai.
Um solavanco, tilinta o sacolejo.
Pausa.
Aberta a porta de vidro para nova vida.
O tédio da Segunda finda.
Ela entra.
Não me deu Deus todo o tempo do mundo, nem me impediu de deliciar novas vistas.
O linho branco da saia roda riscas, o ar remoinha-se espiral e o perfume junto.
Sorridente vem.
O Dono, por trás da Registradora, meus pés encharcam-se prisioneiros dos sapatos entre cheiros envelhecidos grudam-se os dedos, o intestino ruida ressôos pelas prateleiras, dois redondos de suor no covo dos braços, vem para mim sorridente vermelho a boca linda, gagueio vago bons-dias perpassado de hálito ruim, da Registradora para trás do Balcão, lento vai, o chão não ruir o assoalho não ranger sob o couro ressequido de meus malpassos, tomei meu banho matinal lembro-me bem mas as ceroulas com certeza não troquei. Ou trocou? Trocou, como todos os dias por dedicação sua mulher não faz menos, e as meias brancas em liga esticadas, perfumado talco, glostorados cabelos nem tanto negros nem tanto gris.
Solícito servidor, o Dono atrás do balcão os grudados quadris, as mãos percorrem abertas da renda à seda, os olhos fecham dentro deles o sorriso vermelho cílios lindos, o enchimento dos ombros os vazios da blusa, escorrem lisos cabelos em pontas de permanentes ondas, o colar de bolas brancas roçando a pinta na curva redonda do seio fonte de perfumes.
Anna, dois enes.
Anna Ennes?
Olhos nos olhos ardem a repentina mútua paixão.
Os botões de madrepérola sob a pressão das unhas esmaltadas deixam ver mais que a pinta permitida, além da curva redondos e perfumados, macios nas mãos os lábios encontram delicados o arfar oferecido da carne feito verbo amar.
A loja fecha para almoço: assim que Anna Ennes a cada dia volta, por benevolência de Deus, pão de minha vida, Aurora Minha com Crepúsculo marcado.
Deu férias para o Balconista, única desde empregado. Três meses consecutivos. Daria outros trimestres, daria muitos mais. Não fosse esse o tempo exíguo que Deus lhe permitiu ser feliz.
E um santuário s´erige na loja profana. De um acanhado quarto até então sem serventia que ser despejo de caixotes de papelão escada quebrada torto balcão desusada escrivaninha registradora antiga, muito mofo e aranhol sem janela e caiado tem uma porta aberta agora para o amor. Entre beijos aos poucos pelos dois retocado, permanece intacto o quarto do desejo como Anna Ennes o deixou, quando se fez crepúsculo certo a inesperada aurora.
Um vaso azul, flores de organdi verde e rosa em arame armado ramilhete. Oferenda para a Senhora da Conceição, a proteger-nos de distraída concepção. Do oratório lamparina derrama vermelhos, pendente do céu de crépon.
Tenda árabe, dos cortes de tecido desfraldados de cima abaixo, entrecruzados de parede a parede amontoam-se qual almofadas sobre o balcão, sedas do rosa ao maravilha, o calor da casimira o frescor do cetim, rendas emolduram de flores os beijos e na pele tatuam asperezas à espera de carinhos, chita chitão e algodoim aparam os líquidos do amor.
Um espelho. Toalha. Bacia. Uma cama patente, rearrumadas molas de rangentes alegrias, de solteiro cabem os dois. O rádio é contraponto, à música sublinha o ranger compassado das molas, cantores fazem duo com o sax, e o cheiro quente da válvula retoca os odores do amor. Mais seria desnecessário, o tamanho é do céu. A eternidade vivida a cada momento, o pêndulo é foice a somar inverso os minutos dos contados Três Meses, prazo fixo pela benevolência de Deus.
Se Anna pouco fala, os olhos em branco e preto a carvão acentuado, expressivos lêem o escuro de minha alma.
Encontros mudos, poesia onde as rimas se beijam o ritmo carícias em métricas desiguais.
Dedicada entende o marido distante os pensamentos colados na guerra dos mundos, de manhã a Luz o encontra entre os canteiros do Jardim a correr que faz bem para o coração, o peito robusto o porte ereto, as maçãs coradas os olhos acesos perdidos entre as árvores, a moral mantida apesar da Crise, ruína dos desavisados.
Sábados sem cinema. Almoços não mais. Chega tarde para o jantar. Dedicado, aguarda-o paciente chá. Só estranha não ter ele perdido o sono, mas Dedicada sabe, a insônia chegará o mais tardar. É assim para um comerciante: não apenas entre trincheiras as baixas ocorrem. A insônia virá; se a insônia não veio já.
A noite que passou acordado foi em Santos. Anna Ennes, voluntária da Cruz Vermelha. Chamam-na os ferimentos de Guerra em Áfricas distantes. Nunca mentiu permanência eterna: eterno só o amor que a você devoto de coração; desde o primeiro dia sabia a data de minha partida em navio americano; e nos primeiros beijos entre lágrimas esse foi o sal de nosso amor. Amor com começo e fim. Intenso e sem promessa. Sem outro crédito além da paixão, nascida e reforçada entre beijos essa paixão encurtou os três meses que pareciam tão longe de um dia chegar.
Deus dá. Deu, tirará.
A dor da partida, o preço a perder de vista.
Descem a Serra e pensa quão difícil seria subir quando outrora não existia o Caminho do Mar.
Cais. Os estivadores, os músculos parados, esperam os Mercantes que não atracam. Nos tempos modernos, a moderna pobreza. Outra cara, na fome a mesma dor. Sorria, mas as lágrimas escorrem perdidas entre a compaixão e a despedida.
Pista de dança ao beiral das ondas.
Anna, à luz do azul mortiço de lâmpadas veladas, para sempre será linda assim, dolorosa despedida.
Pouco falta para a aurora subir em ramilhetes de maravilhas e rosas.
Hálito perfumado de rhum.
Tangos em compasso de adeus. Garçon de pés machucados no bico fino e punho ao peso de copos e garrafas, a cintura ágil nos desvios dos casais a dançar, corações trespassados.
Rosto colado em redondo suor, mãos entrededos enlaçadas.
Amanhece entristecido azul. A luz guilhotina da noite o dia. O coração parte em navio na imensidão do mar, a Serra, quão difícil subir levando no peito a massa negra onde bate a solidão.
Chá.
E muita dedicação.
Aos poucos, retoma e tece o todo-dia nunca mais igual.
Se retornou a alegria e o tilintar do troco, aos sábados fitas de Guerra, e tudo reaparecia entretecido nas malhas do sempre igual, por benevolência de Deus jamais perdeu, Meu Querido, a Firmeza reconquistada, para gosto de Dedicada, o Abusão.
Toma chá.

Arquivo 03 de Conto Romances
Paulino Tarraf
Data 30/09/2007

Sobre a versão de 24/07/2007
Sobre a Versão de 03/06/2006 paulinotarraf
Sobre a Versão de 07/12/2004
Original_12/06/1993

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