012 Vina, expressivo olhar

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Vina, expressivo olhar


Bastou um susto; se um susto foi!, porque Vina nunca mais falou e jamais souberam o por quê de muda ser embora eloqüente olhar.
Desde os três anos. Pareceria da própria voz não gostar.
Nenhum som, contudo faz-se desnecessária voz: diz silenciosa o que pensa tanto calma por comedidos gestos de harmoniosas curvas, ou desenhos traçados resumos no ar; quer apontem indicadores dedos quer as pálpebras assintam ou desaprovem cerrados lábios de cantos contrafeitos, todos entendem o quero e o não.
Atenta do alheio ao riso e à dor, compartilhadas alegria e lágrima, nada lhe escapa dos gestos e falas das gentes. Deleitam-na das frases compridas nas conversações os agudos e graves decrescentes, pausas titubeios lapsos reticências cicios murmurantes, encantam-na de certas palavras os vários timbres. Os íntimos sabem quais palavras essas e Abadiah, a dona da fazenda com carinho de mãe, de propósito repetia beija-flor queixume queijo-cura machuchu e pingo dágua. Incandescente olhar acende inteira a face: pelo aceso sabe-se dos gostos da menina; também se sabe do amuo, do desespero em desmesurados gestos do andar rápido dos volteios sem saída sabe-se dos desgostos; mas é raro o descontentamento dar-se. Nas oblíquas trilhas o claro de seus pensamentos.
Cresce em graça nos carinhos de Abadiah no apalaçado da fazenda, dentro dos olhos da mãe em reservada distância no casebre dos colonos; e nos cuidados de Gertrudes, ama-seca prenhe de amores jura dedicar-se à menina, casar sequer ou abandoná-la enquanto vida eu tiver e nem morrer, desde proveitosa ela ainda me sinta e eu seja.
Gertrudes não foi a única, de serviçal utilidade e cega fidelidade, em estabelecer-se no paço onde outros lhe fazem a corte, obedecidos desejos como se pensamentos fossem cetros da rainha menina. Principal vassalo um comprador nas fazendas de café e algodão colhidos, abonado gigante do comércio pois abastado nas empresas ao arraial das Borboletas vem deleitar-se em explorar a terra, plantar e colher pelo prazer de assim o fazer, em fabrico dos próprios insumos ver crescer o bezerro a flor desamarrotar-se em coloridas pétalas o grão enraizar-se ereto caule, pois a alegria de vender para mais comprar tem na Cidade o comércio pleno e agora docas para o mundo abrem-se na facilidade da radiotelephonia eléctrica.
Perguntado o nome, mexidos lábios como se um beijo e depois como se um sorriso, respondeu num sopro Vina.
E os dentes em troca de idade, faltos dois e os outros lindos, mostraram-se na gargalhada sem som quando ele disse o dele.
Tocaram-no os impressivos olhos sugaram-no, e outra luz não teve ao redor senão o brilho a soltar-se deles, estrelas de grandeza maior. E, dentre todos os vassalos foi o satélite de maior fidelidade; por conseguinte de ser o de maiores posses.
Resolveu dotá-la.
E célere, comerciante dos bons, passou de vassalo a régulo; sem dispensar a ama-seca, tarefa, percebeu, impossível quanto persistente se mostrou Gertrudes de inescusável experiência.
Resolveu dotá-las; aditada ao séqüito Gertrudes logo percebeu quanto um defeito, como tal aceito, pode ser útil e deve ser mantido, as regalias de sobejo compensadoras. Sabedoria, acreditou, cabedal também da menina Vina. Muda deixasse de ser, não deixaria de parecer: concluiu Gertrudes por malícia.
Não desacreditava Gertrudes da mudez de Vina. Mas quem sabe a malícia tenha inserido o germe que desta época cresceu da incerteza certa para a certeza incerta, escreve Benedito Rui em rascunho riscado por ele e recuperado por sua diligente Mãe.
Um proveito próprio a não ser subestimado, anteviu Gertrudes no protetorado a benesse por vir. Vina não ser muda, quão bom seria fingisse ao menos. Só não gostou de trocar a fazenda Borboleta pela Capital. Mas soube gostar, afilados proventos.
Homem de admirável agilidade com freqüência aparta-se dos negócios na Cidade e vem ao Arraial, não a trabalho inda por pouco tempo seja, mas para tê-la nos seus joelhos assentada, e passa horas no prazer de propor-lhe enigmas em pantomimices resolvidos. Ou então, inda ao colo, ela acende o charuto que na boca chupa fazendo barulho como se comediante fora provocando risos, em sopros de fresco hálito a menina apaga o phosphoro incandescido e bochechas inchadas na satisfação, tal acolhesse a brisa da vida. Ao deixá-la, lágrimas. Dele!; o lenço de cambraia pronto nos dedos de Vina, e o pente risca certeiro nos cabelos densos da brilhantina o corte valentino, perícia da menina. A palheta e o adeus sentido. Dele!
Ele volta. Carregado de presentes. Mas o maior regalo é para ele mesmo, Vina comprazer-se argila de esculptor e, de menina a moça, ditar-lhe-á os modos e as vestes figurinos de paris em confecção na Capital os tecidos das Índias de Inglaterra nela tomam forma a seda antiga e fazendas de moderna indústria. Despede-se. E volta.
Carregado de sonhos, assim com sonhos preenchidos serão os trabalhos e os dias, catapulta no presente o sucesso venturo, os pormenores tecidos no caminho para o fito único de vencer: Vina meu estímulo.
Ela aguarda a volta, como coisa da vida, conformada. Por decorrência aprendeu o bom de ter sumiços, malicia Gertrudes.
Volta um dia com a Noiva. Linda mulher à altura dele gigantes, ricos ambos, somada crescerá inda mais a fortuna dos dois em moeda sonante e bens imóveis, prestígio na Junta Comercial por ele presidida, mais negócios à vista.
Noiva toma-se de paixão por Vina, agarra-a no peito preme às bochechas mordisca, quero comer quero comer esta menina! Mas ele afasta-a por premeditado de não expor a menina ao comum da vida, Vina tão especial, no Arraial das Borboletas escondida do comezinho humano, se quiser vê-la, Noiva, nem é o Arraial tão longe que uma charrete não alcance ou no cômodo fiat conversível ao sol de abril é passeio a se não depreciar escreve Benedito Rui, compostas memórias.
Seguidos anos em outros sítios oculta. E na reclusão toma forma o quanto latente prometia.
Primeira vez aparecera ao público, para ela os suspiros molhados olhares presa nos peitos a brisa, Vina brisa das brisas, quiseram-na para sempre reter, Vina fugaz. Da vez primeira e, em outras tantas, Vina brisa leve soube dissipar-se para vívida reaparecer e, de pronto, no vapor do tempo voltear-se.
Primeira vez aparecera ao público no casamento dele; e Vina dama de companhia, cauda e véu imenso cintilante das lentejoulas a linda Noiva, para ela menina os olhares da Noiva e convivas por fascínio voltaram-se.
No entanto Borboleta arraial pequeno demais recursos de menos, nem serviria o vilarejo para as letras primeiras do grupo escolar quanto mais uma educação esmerada prover senão a Capital, metrópole a crescer sem parar, promove para a vida intensidades outras. Que crescer em Vina, latência promissora, ainda não encontrara a plenaforma.
Metrópole de milemil modernidades sem licença entraria à força estivessem os olhos amplamente fechados. Gertrudes queria de volta o Arraial recuperado, belos pôr-do-sol refrescantes verdes límpidos regatos o pó da terra molhada de chuva, contrapostos a ruas de paralelepípedos, a gasogênio em chaminés de vehículos às centenas martinellis em vertiginosos andares o povo apressado mulheres de chapéu os homens ternos de gravata lojas iluminados risos de manequins solícitos tudo isso Vina gostou quando chegou mas a Estação da Luz jamais esqueceu, Vina desmesuradamente mais queria quanto olhasse e assim se passaram dez anos.
A menina em crisálida cresce, mãos e cuidados dele gigante sem descanso, na Cidade cura prosperem os negócios e freqüente pelos trilhos vai à Capital visitar Vina, de vôo dirigível iria houvesse algum em rota comercial, riqueza consolidada compro aeroplano para idas e voltas Cidade trabalho Capital.
Em casulo de seda, aurélia guardada dos maus tempos, revoluções passaram com voluntários em marcha e ouro pelo bem do estado, Vina guardada não viu, tiros ferem as paredes e o barulhão das balas os ouvidos dos pacíficos, Vina entre sedas não ouviu, passam anarquistas italianos embrulhadas bombas em jornais e grevistas dobram as ruas cruzados os paletós nos braços operários, Vina guardada entre sedas livrou-se dos estilhaços, os crimes acomodam nas malas as adúlteras em migas multiplicadas, aviões sobrevoam baixo as soltas bombas confirmam medo antigo de caírem os céus sobre cabeças, viu sequer ouviu em seda envolta Vina um dia retornará a Borboleta confinada ainda. Assim acreditou ele, assim acreditava eu, pensa Gertrudes, mas desenganei-me de que fosse boba a menina; e, boba que não sou, calo-me.
Vina meu segredo encasulado; no entanto ele quer para a menina a admiração de todos os olhos em fascínio, completa Benedito Rui em seus rascunhos. Seria estrela de cinema, a vida reservados fragmentos ao público, não houvesse o som invadido as salas, primeiro a música a impor seu compasso para o ritmo da luz-em-acção e agora a fala a traduzir pensamentos por mentiras qual no real cotidiano coisa outra não fazem as pessoas mais se esconderem no simulacro de se revelarem, anota Benedito Rui em suas memórias destinadas a cinza comporem-se efêmeras.
Ademais, acrescenta a malícia de Benedito Rui, Vina cresce bela a cada dia; ele pigmaleão, ao cabelo aprimora o corte aos passos no andar corrige a postura ao sorriso modula nos lábios a rima e Vina, carnalidade plástica e dom natural, por mais arranjos houvesse em cada gesto ou obliqüidade do olhar, ainda assim ninguém diria não ser a graça e o meneio reflexos de um íntimo de virginal pureza.
Os dentes, corrigidos tártaro e mordedura ao formato de cada um branqueamento, manteve nas gengivas desenho de fino recorte e brilho rosa, a fenda entre os incisivos se era graça quando criança corrigida fez de seu sorriso de moça a perfeição de pérolas requerida pelo poeta.
As orelhas, os lóbulos de maciez e recorte delicado não sentiram do cirurgião a leveza de suas mãos, entanto demais separadas e avantajado tamanho, qual ventanas também as asas do nariz, rearranjaram-se ao deslizar do bisturi; sequer uma cicatriz testemunhou não fosse a natureza mãe de acertos totais e falha nenhuma.
A natação, os esportes em voga nem por isso menos corretores das falhas nos humanos prenhes, os ombros subiram e arredondados firmaram a altivez no porte assim como o dorso perdeu uma possível curvatura desigual.
Professoras de postura, conduta à mesa. Como em nenhuma outra o salto sublinha o torneio da perna, a meia de seda ressalta a graça da pele, o chapéu emoldura a bela cabeleira.
Na mudez não interveio.
Adendos ao inato de seu próprio ser, as ofertas pródigas da indústria e arte pela modernidade conferidas encontraram no gigante do comércio feição natural a desenvolver-se. ASSIM, arrola Benedito Rui as qualidades dele quando ainda, carregado de admiração pelo vencedor, foge do estilo para tecer as loas no livro que pretendia biografia. Cada frase escrita, onde o elogio se estampa, anos mais tarde completará o significado com o matiz advindo da decepção:
Desde moço o espírito empreendedor, numa sociedade de romanos o melhor é ser pagão que na arena cristão padecer entre feras, desculpai-me padre damiano, escreve benedito rui nas memórias não suas mas dele, conquanto não autorizadas pouco importa pois destinadas elas sim aos dentes das labaredas, desculpai-me mas prefiro ter funcionantes as garras. em roma, ser romano:
É gigante na zona cerealista e tem do algodão o melhor preço na compra ainda melhor na venda.
Não foi em vão penar os solavancos do lombo de mula. primeiros sucessos melhorou para um alazão. agora, quando mais abastado, ao volante do fiat tem motorista de óculos de vidros em amplos aros feito máscara quepe de lona azul a borboleta brancas luvas e botas, se o permitem as erosões da estrada não encravar nos buracos dos enxurros chuvosos, atravessa o sertão em busca do produtor da safra encalhada.
Os cereais forram de seus armazéns o fundo falso e nos porões sob a porta alçapão, aguardam na carestia o lucro compensador.
Livre tráfego nas docas. Empilha sacas em Santos, armazém à espera do mercado. Quando visita a menina, ilha de Santos praias de São Vicente a fria areia o sal do mar, e na Capital, os três: ele a Noiva e ela, abertas as portas do teatro dos cinemas descerram-se as cortinas das grandes telas exposto Male&Female brilha, o ondular das plumas sugerem um farfalhar melodioso ao andar insinuante da Atriz Secundária, preferida do Pharaó, as mesas reservadas de elegantes restaurantes aguardam decisão entre caças e massas italianas ou viandas francesas de maturadas carnes; escondido delas desliza às joalherias e ao diamante no broche empalado quando não um colar de esmeraldas compra presente em gratidão por saber o quanto se apraz Olga com o precioso das pedras e para os discos de Raphael tem o sexto sentido na escolha dos carusos em discos veroton sem chiado e uma electrola é a novidade ainda não vitrina das Jóias Duque do comércio modesto da Cidade para onde volta contente com a vida abonada que se Deus lhe negasse ainda assim agarraria.
Trespassadas com alfinete e juntadas ao original de Divas, folhas de almaço rasgadas e remendadas com tiras de papel e cola no verso, a lápis e rabiscadas, frases para sempre sepultos em borrões, trechos sublinhados e comentários de aproveitar; nelas o seguinte texto:
Cidade, Arraial, Capital, por onde passa o seguem os murmúrios da admiração. Quer pelos elegantes gestos, ou o alinho das roupas, ainda a retidão de caráter, a pé ou de carro, foi um dos primeiros a adquirir a barata conversível, embora não despreze fazendeiro o puro sangue sonador, com o mesmo aprumo tratados o jaez das montarias a leveza do passo o brilho do pêlo balouçante da crina. Não mais distingue se Vina o impulsiona ou Vina de seu pulso nasce, prêmio ao mesmo tempo vitória.
Se cresceu a menina, também a Cidade. Despida de suas vaidades, na força do progresso conquanto a modorra quem sabe o sol talvez a quente praça o coreto calmo a banda largado dobrado de fagote e flauta, a vida no diminutivo e superlativa saudade.
Os Noctívagos, descrentes de um dia outra coisa acontecer senão a lua desnudar-se prata na tela negra do céu de mudas nuvens e os palitos decidirem o pagador das cervejas, ganha-lhes novo sabor a vida.
Terça-feira, noite de sessão comum, do cinema em semana inaugural, a gigantesca tela contém a grandeza de Male&Female, Female de corpo inteiro em berço de cachoeira fluente pelos recurvos do vestido justo a água prestes a delir sedas e pérolas e jóia rara a pele rósea brilham dos homens olhos diamantes, o melhor amigo da mulher, se loira preferem-nas embora carreguem as morenas ao altar.
O gongo.
Silêncio, do soprilho os sussurros, o perfume antecede e promete, a passos vinte-e-quatro quadros medidos por segundo o casal acende olhares e entre fogo caminha, ele em terno creme e ela rósea, na platéia os lugares reservados, círculo vazio à volta no centro Vina cercada por torrentes de paixões.
De rosa pedras pelo vestido descolam-se dela desenhos de folhas e flores, dele os cabelos brancos brilhantina valentino repartidos a gravata em seda fina, o casal de braços dados arrasta-corações.
O gongo, grave, a penumbra s’insinua e a cortina vermelha corre lenta a desnudar a tela, Vina cercada de sombras, a luz muda em teimoso facho a mover-se indócil na tela, nos olhos desabrigados as chamas agora cinzas de persistente rosa.
O celulóide, riscado de tempo em branca tela negros arabescos brincam intrometidos nas cenas de maior emoção fazem-se flores de assimétricas pétalas, pulo brusco a scena muda de quando em vez, ocres pedaços de emendas no filme queimado, quem liga!, esperam acendam-se as luzes para a Diva em adoração contemplar, oh não!
Antes do fim projetar-se esperança na tela, de braços Vina e Damastor são recolhido sonho fugace aguardando no escuro acender-se o facho, castos corações.

Arquivo 012 de Conto Romances
Paulino Tarraf


Versão 07/10/2007 sobre a versão de 21/02/2005

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