07 Fauno de Pedra



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Fauno de Pedra


Perfil, atento entre folhas enverdecido limo, nas mãos a flauta e pés caprinos, o Fauno na fria sombra do úmido jardim, permanente estátua a sugerir busca lúbrica que sua carne de pedra nunca sai do lugar. Fauno não mais, velho guardião apenas amoitado, e somente seu olhar amendoa promessas que seus pés bífidos na pedra fincados nunca fora do mesmo lugar.
Passos rápidos, quase ninfas em flor ainda nas alamedas os moços indiferentes às amêndoas dos olhos de pedra do Fauno, outros ninfas não mais, mãos nos bolsos, disfarçam em duros passos os rápidos olhares quebrados, nem os requebros do andar passam despercebidos por Miro nem o quanto o tédio tamanho arrancou-os de casa no entardecer molhado do Fauno, quase ninfas, passos rápidos entra e sai por entre mofo de folhas mortas lavadas de amoníaco vai e vem no sempre do mesmo lugar, corre a urina solta entre olhares soltos a correrem mesmo se o jato não vem.
Rápida troca de olhares, dirigidos lânguidos para Miro imploram, olhar de pálpebra descaída cansaço enrugado ombros derreados, todos eles mais velhas que Miro flor da idade não olha para ninguém, hoje pelo menos, recheada em músculos salientes as calças justas, a boca de peixe a língua fina, curto ondeado o cabelo curto quase rente, na face rósea cicatriz lateral, sorriso de dentes ralados afoitos mordem o ar, só aceita dinheiro e bem provocado pode matar. Hoje Miro não vem; e, há três dias Miro não vem e ele, se o condenado à morte tem nome chamam-no os Mensageiros da Desdita pelo nome Victor, fina ironia um achado ser Victor belo nome, mesmo nome do escultor renomado autor do Fauno plantado neste decadente jardim, Fauno a lembrar um Moisés, de flauta inconseqüente no lugar das tábuas de instituídas leis. Próprio para o lugar. Victor. Entristecido a cismar negros pensamentos de trazer no sangue o mal da metade do século. Olhos voltados para a morte encarnada em Miro, que não vem. Miro fauno, pupa ainda à flor da idade, caçador de ninfas fenecidas.
Se Miro à espreita das fenecidas ninfas, espreitaram-no os olhos de Victor em busca da destreza de Miro, serrilhados dentes afiado punhal, movido pelo ódio boca de peixe cicatriz em vírgula, em suas mãos a lâmina é mestra em feridas esculpir.
Não tanto velha assim, cansado desde ninfa iniciante, os pés nunca no mesmo lugar e agora não tanto velha assim a morte ameaça horrível repugnância dilacerar seu corpo feito na medida do prazer amado. Não está hoje aqui como há três dias Miro não vem, boca de peixe dentes em lâmina carrega um punhal e bem provocado pode matar alguém que outrora delícias de carne para Victor implorar com olhar descaído seu corpo quente para o desassossego das mãos, um afago distraído, um abraço desigual, algo com que sonhar mas alguém que bem provocado, hoje, pode matar, antes que a morte diluída no sangue apodreça em vida esse corpo feito na medida do prazer de amar.

Alguém que já matou; Victor sabe de um crime sem solução de notícia nos jornais. Um assassino de reserva para as secretas intenções, testemunha ocular reserva-se de contar com quem assassino a vítima emparelhada a bruma entranhou, hoje como ontem e trasantontem, à espera de acontecer de novo busca entre os verdes úmidos da alameda a boca de peixe em sorriso mordida de dentes ralados reapareça e caminhem parelha os dois, selado o compromisso da quantia a pagar se disponham ao corpo a corpo, um assassino que reservo para mim, pensa Victor nos vagos da mente flui o sangue coalhado do mal moderno, da metade do século ano santo do Senhor, pelas alamedas floridas roséolas a proliferar.

Victor viu, não o crime, mas o assassino conquistado. Conhecia a vítima, impossível esquecer o algoz. Tanto sonhou com o gozo prometido no jeito abusado do rapaz de salientes carnes quanto lamentou não terem sido os seus os olhos molhados de triunfo e esperança de ter nas mãos fruto e pecado, a língua raspar-se no quelóide rosa, ser mordido de dentes ralos a sorrir, quem sabe alvo de desprezo em rude trato, machucado para pagar mais que o contrato e dormir jurando nunca mais voltar.

Um talho a navalha rompida a vida, nos jornais um mistério perfeita em foto a cara amiga, Victor sabe pois viu da conquista o ato e foi dormir sonhando um dia ser misteriosa notícia sem acordar jamais. Receber na carne não a carne dele, mas um punhal. Há muito a morte ronda a mente. Em dias variados, nos últimos mais freqüente, ela vem mortífera e finca-se pedestal sempre no mesmo lugar. E promete-se horrorosa, banquete festivo em apodrecida carne outrora vida em feitio do prazer amado, tornada repulsiva e dilacerada, pedaço a pedaço transposto em flor e flor a flor arrepanhada em ramalhete fétido de carniça viva, a boca em feridas de cândida e branca flor, não mais engolir sem sofrer, seco- e macerado, cabelos raros em tufos despregados, dentes à mostra em sorriso magro, clamar pela morte já vinda em lenta comilança, melhor morrer de vez reservo esse assassino para mim, pensa Victor nos vagos livres da tormenta na mente.

Vai e volta a morte volta e vai. Meu assassino não chega com mãos em ponta de aço para súbito vazar-me do sangue funesto que mata devagar. Vem e volta a morte volta e vem. Há três dias espero, ele não vem, definitivo sorriso ralado em dentes cicatriz lateral saliente e rósea como saliente a carne em rotundas dobras nos panos apertados a cobrir sem velar.

Fauno de pedra em meio a cipós, os pés de cabra a barba rala pele glabra o torso nu torto em perfil, a boca de peixe o peito talhado em vigor de varão, nas mãos uma flauta quem me dera um punhal, o olhar amendoa prazeres ilícitos, delírios delícias, carne de pedra nunca saiu do lugar. O Fauno, fria pedra verde limo, as ninfas em ciranda de delicados gestos, indecisos passos, vão e voltam ninfas voltam e vêm. O cheiro de urina sapatos em charcos de chuva e suor na meia empapada olhar desfeito de ânsia e cansaço no esforço de ver apressado o jato fingido entre dedos vão e voltam e vêm e vêem.
O matador.
De volta à arena, assassino.
Garoa. Eis, esboçado na névoa redesenha-se molhado no ar, a cicatriz marginal à boca, riso de permanente troça, nas dobras da roupa curvos volumes tensos. Segundos mais, olhar insistente aceno de notas reais, e então perto demais hálito chicletes mascara o podre dos restos de carne comida apressada no jantar, indisfarçável na gentileza forçada do cochicho íntimo, bafo quente do corpo molhado em suor diluído em fragrâncias florais forçado desodor, perto demais latejam pulso e têmporas e o calor do corpo perto do corpo demais a vontade de abandonar à morte a própria morte tarde demais. O assassino, afinal.
Fauno fica aqui. Último olhar.
Amanhã, depois o mais tardar, os jornais. Agora é atar sem dó uma vida desgraçada à gana irritável que ele tem de matar. Puxar conversa, excitar o punhal:
Miro, seu nome?
Muito próprio um Fauno de fino olhar constante sobre as Ninfas não se sabe quem caça quem caçador na decadente floresta do amor. Você não saber do que estou falando, confirma o que estou falando; você por certo vive aqui uma vida de sucesso de enganos. Brincadeira, sua cicatriz ficou vermelha; é que estou de bom humor, e feliz de conhecer você. Espero que de banho tomado. Desculpe. Não quis referir-me ao seu suor lavado de desodorante.

Obrigado, não fumo, você também não deveria fumar. Falo para seu bem, nenhum vício é bom, não sei porque eu deveria parar de falar. Você é muito novo para morrer, você é muito novo para se jogar nesse tipo de vida, você deveria parar. Não sei porque eu deveria calar-me, falo para seu bem, tenho idade para ser seu pai; claro que eu não disse que sou seu pai, não quero ofender mas jamais teria um filho como você, é brincadeira não leve a mal; cruzes! como você fácil se ofende; já vai fumar de novo! Não acho que eu deveria fechar essa boca, afinal hoje quem paga sou eu, é brincadeira, não me leve a mal. De novo ofendido. É aqui, vamos entrar.

Na entrada chapeleira com guarda-chuva semi-aberto em latão niquelado. Paredes em veludo camurça verde musgo, folhas de nervuras expostas galhos sinuosos de calibres vários percorrem a parede em geométrica floresta com borboletas gigantes de asas e antenas recurvas em metal douradas. Grande espelho de moldura clássica reflete o gosto espalhado pela sala. Arcas baús oratórios cômodas envelhecidas em cores ocre e verde desbotado. Anjos em gesso prata. Penas de pavão em vasos. Negro escravo de libré esmaltados olhos de espanto brancos.

Você por certo nunca viu tanto luxo. Apague o cigarro!

A resposta vem, rápida demais.
Num golpe o vigor. Mordaça e amarras. Livres os olhos de espanto rubro seguem o movimento brusco à sua frente que da camurça musgo da parede desprende os galhos de metal flexível.
Retorcido é corda para as pernas nas pernas presas, os pés nos pés, os braços no espaldar da cadeira de vime de pedra, o espelho quadro vivo do imóvel e nudo desamparo, moldura em latão.
Miro tira a roupa lento dobra num canto pousa cuidado, os músculos saltam livres e no espelho em pose, boca de peixe dentes ralados: o banho depois; agora, ao trabalho!
No quarto as gravatas, o rapaz com os olhos separa as de seda macias ao olhar, levará depois do ato, ao qual volta concentrado.

Asas feito navalha cego vôo das borboletas no dorso esfola a pele arranca pêlos, a mordaça impede o grito, esgarça-se o gemido.

A cicatriz inchada rosa no esgar de satisfação de raspar: limpeza da carne depravada, preparo da pedra para a arte cinzel, no espelho a tinta vermelhas manchas ao acaso espargidas.
Rápidos e calcados passos, revira gavetas o som de talheres, vão apressados e a cada volta garfos e facas de ponta rombudas exibidos ao modo de circo para o próximo ato, graciosos gestos delicados jeitos, e a ponta fina de aço inox reserva-se para o final.
Impossível desfazer os nós, voltar atrás, quem dera hoje fosse amanhã, daqui a um mês rir. Atados pés, para sempre o mesmo lugar, a morte não estava no sangue, apressado engano, a morte com certeza aqui de fora para dentro come, arrota e ri. Sem retorno.
Miro labora lento. Circunspecto escultor. Um cigarro enquanto pensa. Cuidadoso ornamenta Victor, mármore em busca do cinzel carne por moldar-se efêmera escultura frente ao tempo de ser a morte eterna, lado a lado com galhos e folhas e pedúnculos latão, as antenas das borboletas no nariz retiradas em tempo de devolver a respiração. Fumaça, pensa mais. A asa da borboleta retoca pontos no peito, a faca rombuda aprofunda sulcos, o garfo estrias de tortas geometrias. Para e descansa, acocorado e nu. Retoma, lento ainda. Experimenta nas facas os cortes, pontas e flexidez: a carne de prova amordaçados gritos, gemidos lenta lâmina. Própria para o fígado, ideal para o baço, feita para o pescoço, todas de ponta fina.
Cansado, uma ponta rasga certeira a garganta, e o sangue esguicha do fígado e baço apunhalados. A cabeça pende em perfil, cipoal de folhas gigantes borboletas abertas, olhar esgazeado, pés atados não mais fora do lugar emoldurado em camurça musgo e veludo verde.

Banho perfumado. A roupa limpa cigarro aceso, admira demorado, o sangue derradeiras gotas quase coágulos, a obra prima finda.
Pega as gravatas.
Sai.
Fecha a porta.


Arquivo 007 de Conto Romances
Paulino Tarraf


Versão 28/09/2007
Baseada na versão de 05/02/05
baseada na versão de 21/03/2004

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