017 A Batina

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A Batina


Desabotoada a batina do colarinho ao saio, exposto o peito mulato ao sol e brisa, barco sem rumo meu corpo num rio voga à deriva minh’alma enseja renascer, no entanto o bem estar cede e a luz, cendrada se tanto como em sonho sói, clausura faz-se repente breu.
Voz clerical do alto púlpito côa-se pela nave e abóbada:
em dimensões outras, reinos etéreos de luz, vigem lucífluos desencarnados homens. Livres dos pesados corpos gozam da bem-aventurança.
Filosofam as luzes com sabedoria:
todos nasceremos um dia.
Ao arrepio lucilante dos mais medrosos, tranqüilizam-nos os Lúcidos Espíritos de Límpidas Auras:
mas, purgatório dos passados,
a vida
não é eterna;
logo,
retornamos
expiados males
das dissipações contraídas
quando matéria inferior.
Damiano acorda num pesadelo. O quarto não era o mesmo requintado onde padre secular mora mas franciscana cela, de braços crucifixos pende mortalha escrito Ação em góticas maiúsculas de vermelho vivo. Navalhas despedem-se do Christo contra sua barba e aos gritos de Amandio, gritos vívidos num recanto esmaecido do sonho, desperta de vez do pesadelo resta o amarescente das indigestas sensações.
Volgo num rio quando num rio se voga. Feito quisto a frase crucia-lhe o dia desde a missa celebrada às pressas.
Céu ou Inferno, a Deus compete a decisão após a morte. Contanto, vivo no inferno!
Jejua, não por sacrifício sequer por renegada a gula: tomado de fastio; com certeza morrerei em pecado; conquanto não se dê à luxúria, os seis pecados capitais restantes avantajam rasos no inteiro da alma.
Confessor que não sabe perdoar sem ira, conseqüente sofre o rigor no julgamento de seus próprio atos, tolhidos passos pela ameaça constante da sentença estremada, acometido pela dor que desponta nele ao notar quão livres correm os homens em busca de tesouros terrenos. Vir Dives, em particular Damastor parece ter riqueza emanada do céu, a vida plena de conforto goza do amor compraz-se no respeito de todos. A mim cabem-me os deveres cumpridos no hábito programado. Cumpro? Minto! ninguém tem balança fiel dos próprios atos, ou possui o metro confiável de seus próprios valore: a mentira é a unidade de medida.
A Boa Vista é bairro numa colina vis-a-vis à Cidade. Pela segunda vez vem à alfaiataria; por trás da porta verde, se encontrará Damastor, também ali Rapahel se encontra. E Olga. E vida nova. Num inferno vívido.
Rapahel alfaiate acredita ressuscitar o espírito em nova carne nova vida e prega a boa ação. A dor será tirada pela ação, vocaliza de pronto Raphael.
Oração, eis o pão das almas; sussurra padre Damiano em contraponto, as postas mãos.
A singer costura ao som dos guizos de suas correntes.
: Falar em caridade de espírito é fazer tinir um moedeiro falso de avaros moedeiros, palavras dadas a quem tem fome, senhor padre.
: Não só do pão vive o homem, digo, quem dá aos pobres empresta a Deus; é falácia transformar em investimento econômico um preceito sábio.
Nessum Dorma, diz baixo cantante Raphael agravada voz; vencerei, vencerei! parece dizer. Encerra com triunfal marcha os calcados pedais roleiras correntes sibilante agulha a furar o pano e Olga surge no umbral, Celeste Linda.
Num rio voga-se. O sonho vem à lembrança de Damiano; aguarda pesadelos.
Volga rio ruço
das almas mortas
aos pedaços
sombras fortuitas
flutuam feito glomos pardos

padeço nos minutos a eternidade.
onde o rio do esquecimento, é pergunta calada no peito.
Tremem pernas, especa o corpo no espaldar da cadeira, não só, arrepios no coração e não só, os olhos verdes de Olga jamais desceriam para mim como os meus glissando atrevidos pelo decote, cintura e abaixo, DeusmeuDeus!, navego desatrelado no rio do sonho meu, inferno meu, a barcaça alcança da luxúria o ameaço, o rio de sangue do cordeiro Amandio, irmão de minha ruína.
Se de Raphael nada cobiçei, Olga dos olhos verdes, por ela acrescento a cobiça ao capital dos pecados meus.
Atrás de Olga surge Damastor, os suspensórios caídos nas laterais; e diz com voz vinda de além do sono: nada sublime obsessão tolda-lhe o espírito, parece-me senhor padre.
Ombreia-se com Damastor, até então o ciúme pecado vivido nos relatos filtrados pela treliça das confissões.
A voz articulada num bocejo, filho mais da elação que pelo sono provocado, tanto agigantado se encontra, Damastor sem piedade: um passe de Olga eu indicaria ao senhor Damiano padre, o poder catártico de suas lindas mãos transcende das religiões o discurso das meras disputas.
Alfinetes na boca, crescendo fortíssimo estileteia Raphael, olhos enviesados para Olga, pombos ambos de recente esponsal: a imposição das mãos de um padre, com poderes de desligar e religar terra e céu, pouca valia às mãos de Olga ele deve atribuir.
As mãos de Olga sobre a tonsura jamais pensara, seja como bênçao por contrário à própria fé seja como toque de pluma em licenciosos gestos, das mãos de Olga adivinha-lhes o calor a percorrerem seu corpo casto. Figuras colorem agitadas os pensamentos partidos, rápidos férvidos caleidoscópios, incitam-no indisciplinados juntar-se à lúbrica mulher.
Amandio, doce Amandio, quando me perdi? Inocência de meninos, medroso dos trovões, era minha cama o ninho de sua coragem, o corpo colado ao meu sacudia-se no barulhão da tempestade. Amandio das perguntas tolas, inventor de teorias gêmeas do absurdo, irritante quanto crédulo temia os fatos na mesma facilidade de criá-los e, logo mais, feliz com as soluções nascidas no nada. Obediente quanto eu turrão. Queria ser cantor não popular de rádio mas no palco óperas recheio de dramas revestidos de enfeites, pilotar aeroplanos negando o medo de altura impedir subisse em árvores: quanto quis que ele morresse e um dia obediente morreu:
padeço nos minutos a eternidade.
Etiam tum, etiam tunc Amandio, se preferido de nossa mãe, eu o escolhido de realizar no sacerdócio o quanto devota era da Virgem. De menino eu fazia alarde de minha vocação, e o brilho nos olhos momentâneo embora obscurecia à volta o encanto doce de Amandio; assim em meus empenhos a sonhada carreira na Igreja, quem sabe no fundo acreditava-me papa e morto santo quiçá.
Amandio santo por certo, fossem outras as condições de sua morte. A bondade de Deus reside em atenuar nas conseqüências o mal na origem de nossos atos: morreu Aparecida Preto e não sofreu o impacto dos filhos, nós, serem no futuro o pesadelo tornado dos amenos sonhos no seio gerados.
Os pensamentos de Damiano enquistam-se agora nos verdes olhos de Olga. Percorrem feito dedos anéis de seus cabelos, feito luvas curvas do colo, feito boca úmidas cerejas entreabertos lábios de sorrir ao mundo, rir de mim? Quanto exprobrou Amandio por querer a cura contra tormentos, de ouvir Olga receber dos mortos luminosas mensagens, espírita falar a espíritos, poderosa e bela, saber notícias da mãe, declarar saudades e breve retorne na rica natureza em flores encarnada água de fonte remanso de rio efêmeras aurélias ou revê-la se Deus quiser o menos tardar em dimensões filtradas de todo mal.

padeço nos minutos a eternidade.
quero a pax de seu regaço
eflúvios
Expes.
Non modo Amandio sed etiam Peixoto queria das mãos de Olga a salvação para os males do atordôo.
Peixoto, a pacatez do dia no porão, a distribuir entre cadarços de anafaia as scenas das fitas para breve estréia; efundida noite no cubículo de projeção jorro num salto de luz, vidas em branco e preto, alimento das emoções. Compraz-se Peixoto nesta vida de passamanes, passafilmes, confinados limites.
Nestas reticências Amandio risca um travessão. Presenta-lhe Raphael, desde então a vida pacata não mais.
Amandio doce Amandio barbeiro navalha em punho espuma na tigela, Peixoto meticuloso Peixoto no porão do cinetheatro as photos silenciosas dos filmes metros mil de sonhos sem fim, Raphael aprendiz alfaiate tem no acorde musical o elo universal. Vai casar, se precisa de dinheiro Peixoto de pianista o bondoso Amandio é núncio dos interesses comuns e, de Damiano, núncio do amor de perdição.
Non modo Amandio sed etiam Peixoto sofria no opróbrio de aceras críticas a cotio lançadas. Vociferante Damiano, não só nas treliças do confiteor, é púlpito a cadeira de Amandio barbeiro navalha em punho espuma na tigela, nave o porão do cinetheatro Peixoto ouve e distribui no cartaz dos filmes silencioso as photos em meticuloso limite. Aqui ali Damiano não se cansa de exorcizar das almas o demônio incubado. Almas gentis não sabem do assédio do mal, desamparadas. Não sabia Damiano então, agora é tarde! Atrás dos desavisados, perdeu-se Damiano. O mal de viés, na trilha da salvação veio, grasso ficou.
Não se casou a música de Raphael solta no ar com as imagens de Peixoto nos limites da tela; mas uma amizade firmou-se e, para desespero de Damiano Peixoto, católico praticante, a cada vez lança-se na dança dos espíritos abençoados; e descrê no tártaro castigo quanto anseia purgar no palco da vida o imperfeito de sua alma renascida.
Me misererum, perdidissumus sum.
O casamento de Olga, não soube se sol ou chuva temperou a tarde, dia de cama pespegada gripe de coriza intensa ardente a testa lavado em febre pegajoso suor, acreditava ainda assim não ter ido às bodas por ressentido com os franciscanos da Boa Vista ministrarem casamento a espíritas, no altar conhecida benzedeira de mesa branca Joanna dos Anjos mãe de Raphael, mas recorda-se, em seu quarto entrava a noiva de branco esvoaçado véu a cauda em leque bordados em madrepérolas mil olhos sobre ele e os de Olga verdes pudicos de virgem reverente ao chão baixavam-se, assim foi o dia tarde e noite de sobressaltos, recorda-se e hoje sabe, era o encanto que pelas bordas lhe comia a alma e, se pecava em pensamento? do turvo fez-se um claro impossível de negar, hoje soube.
Resta a Damiano aconselhar-se com o Senhor Bispo: a cabeça repousando nas palmas das mãos idosas, o cheiro de castidade tocado do suave vinho consagrado.
A portas fechadas do Palácio, o amplo salão depois dele o gabinete fechada a porta da cela, reverente pede a D. Libânio ouvi-lo em confissão. E tem na alma do Bispo a bondade abrigo que jamais abriu a seus penitentes.
: Deus, disse ele, é o Perfeito Matemático operador das equações intrincadas dos sentimentos, deles tudo sabe. Se nossa vista simplifica cansada com o sinal de igual os movimentos díspares, para Ele o simples é teia multiplicados nós, como se desenham entre a folhagem aranhados fios nas manhãs orvalhadas pela tecelã percorridos e, não se perde ela no meio deles, nem Ele se confunde, Senhor dos Caminhos. Assim, amar não é pecado; se é amor, como nomeamos simplesmente, o que de intrincado o amante sente.
Mas a Igreja tem suas leis e, Deus Infinita Sabedoria dá o arbítrio livre ao homem para que ele possa, preso às leis de seus iguais, se transgressor, pecar. Assim, filho de minha Diocese, o senhor pode amar uma mulher, mas não unir-se a ela marital, sequer receber de suas mãos as bênçãos, prerrogativa da Madre Igreja. Esse escândalo meu coração não aceita; dolorido por proibi-lo, dolorido se desobedecido.
Um bom filho, se pelo intenso da vida alicilente a brilhar exausto do calor do século aborrecido, pródigo um dia à casa torna. Maria boa mãe, coração de perdão. Vai, dobra os joelhos na igreja devota a ela Aparecida pescadora de fiéis, peça um tempo de repouso em seu manto abarcador.
Tenho eu também no senhor um bom filho: reservo-lhe ser cônego em minha catedral; e desde já assim o considero. Não seja por regalias sua batina mantida: antes que no escândalo se abrase, então renuncie. Filho meu será, quer clérigo seja ou leigo.
Dá-lhe o anel a beijar.
Ao longe na avenida um frade franciscano vai protegido por preto guarda-sol aberto no azul do meio-dia; que se abrasador o tempo qual agora ou quanto a chuva tardar, não lhe caia o céu sobre a cabeça. Coroinhas em bando correm a seu lado, os risos de alegria solta
exista neles a felicidade, dói
os grampos no peito cravados
longe vai minha ingenuidade
e os bens que ela presenta.

A batina ao vento, os indecisos passos.


Arquivo 017 de Conto Romances
Paulino Tarraf

Data 17092007 baseado na versão de 22022005

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