019 Frui Raul entretítulo Laslos

Conto Romances Arquivo 019


Frui Raul entretítulo Laslos

Juvenal inverso do sol.
Laslos, dele falou Olga ter roubado do sol cremosas cores das primeiras horas, do dourado da aurora apurados excessos, os remanescentes na pele fixos deixam ínvidos os olhos tanto queriam as pupilas ter o dom do tato; a luz dá promessas e nega delícias.
Antes de ter assim apetitosa a pele para gulosos olhos Raul da vida simples fruía o amor da mulher e os seguidos filhos, o futuro assentado em presente trabalho. Quem o levou até Raphael, hoje na alfaiataria estabelecido entre cortes de pano e elevada música, foi o violino. Raul, amante dos arcos sonoras cordas, do violino aprendiz sem grandes virtudes, o som por mais belo fosse ao próprio ouvido, no alheio repercutia ruidada desarmonia. As gravações, importados virtuoses, na alfaiataria em alto-falantes de fiel ressonância enchia o pequeno cômodo e na calçada o sequioso ouvido de Raul seguiu os acordes sonantes do Ravel da Tziganie Rapsodie. Entrado, deixa fora a vida simples do dia-a-dia fruir.
Novo horizonte de brilhante raiar, comistos ouro e carmim, os olhos de Olga ousaram verdes à porta mesmo instante os dele, envolto pelas cordas de delicados sons, nela pousam encarnada música.
No portão esperavam-no os filhos, a mulher escondida a meio no batente brilhavam os ardores de revê-lo e, se não saia ao encontro, era por não ser digno mostrar-se casada que era aos olhos da vizinhança. Amor incondicional, conhecida como Mulher do Raul, não tinham empregada tanto era fácil o serviço caseiro por ajudá-la na dança das horas os passos em prestos compassos a espera do marido, já no Ângelus, de banho tomado perfumada as crianças limpas as mãos e o sabonete na pele de cremoso dourado exalavam da glicerina e alfazema a limpeza que o pai abraçava e beijava; hoje não!
De pronto fecha-se no quarto, o arco tendido em cordas afinadas desliza mas o som, o som, raspa de metais acordes encobertos ruídos de melodias quando na partitura é doce a harmonia, o som dos pensamentos raspas do passado pelo presente assombrado, quão pouco estudei do muito que pretendia ser concertista na volta ao mundo brilhar em palcos de consagrada música da gente selecta na platéia culta, essa mulher dos olhos fundos nos meus a revirar-me e eu, e eu!, quão pouco alcancei em minha vida truncada por um amor apressado, ser jovem aberto para conquistas equipado e, mais rápida soma que acertada a matemática, afoito coração num momento de enlevo enredo-me e tudo larguei para afundar-me na mediocridade de ser feliz.
E era belo Raul entre os que vigorosos gozavam a plena juventude dos sentidos. De todos quem mais cedo conheceu as mulheres, queriam as mulheres conhecê-lo de suas mãos receber agrados guardar dentro delas os licores do amor quanto mais cedo!, recônditos sonhos dele conceber; e sob o quente luar vagavam Noctívagos amigos pelas ruas empoeiradas dos bairros afastados, as luzes do meretrício feito feitiço a piscar azul magenta violeta verde os nomes Índia Marina Zíngara Cleuza padroeiras, e proibido fosse ao de menoridade nas paróquias do prazer entrar, davam um jeito as filhas da noite de madrugada finda terminar o comércio do amor sendo mestras venusianas para Raul imberbe, imagem de cupido nos caracóis dos cabelos corpo núbil de salientes intenções, adormecer nos braços de uma quando não outra o roubava aluno no gozo de ensinar. Chamavam-no meu filho; e ele cara de bravo era assim para elas mais neném querido, cansadas dos homens brutos escorregavam notas de cem em seus bolsos que calavam a origem, tanto anônimo é o dinheiro quanto mercúrio reparte-se e rejunta-se descarado ao passar de mão em mão.
Cansou-se um dia. E parou.
Também o gimnásio; do diurno para o noturno, depois mais nada. Música em contraponto no compor dos pensamentos: áridas matérias enfadonhos professores, quanto posam de sábios vão aquém das aulas decoradas do dia: fora melhor aluno e, para sua mãe, era um gênio a tornar-se um dia doutor em leis; falta-lhe um pouco de paciência próprio da idade e alguma aplicação.
Se manda que à mãe Cale a boca! é por costume.
Calada, completam-se pensamentos na mãe: Gênio difícil.
No violino repassava antigas lições, os mesmos solfejos, de conhecidas sonatas os primeiros movimentos. Não encontra um professor à altura, comenta desconsolada.
Fecha a boca. Cala as besteiras. Pura asneira.
Aprendeu com o pai.
Contudo, não era grosseiro o senhor Laslos. O dia na sapataria, ocupavam-no retoques de meia-sola, aprumos de saltinhos, raros sob medida ponto-por-ponto cosia para fregueses menos exigentes; conserto do couro por remendos brilho e graxa; quem olhasse não diria, ao desvestir o avental de couro, tão limpas as mãos e as roupas em esmero cuidadas pela mulher, ser ele sapateiro. Nem diria acometessem-no o morbus comicialis.
Por comemorativos: os sinais apresentados, mal estar matutino, alegria repentina de ser o mundo maravilhoso dom de Deus para contemplação dos homens, lembranças fortuitas de cenas e certeza de certas frases em seqüência pronunciadas agora antes com clareza já ouvira, e um perfume celestial a envolver o ambiente: neste dia não sairia de casa, não ficava sozinho, todos atentos ao grito repentino a seguir-se de queda não o segurassem, e convulsão protegida a língua. A dor de cabeça e esquecimento dava continuidade ao dia; e o alívio de mais um mês sem surpresas. Por respeito à dor do pai o violino permanecerá na caixa no decorrer triste das horas, o raiar de nova manhã.
Redobrados estudos, então: serei concertista dos sons celestiais; do pai quer o amor, apenas.
A sedução pela noite, andar vagando pelas ruas escuras entre raros postes o luar quase apagado na lentidão das nuvens, nos bairros afastados, atraem-no o silêncio dos quintais desertos o despovoado das horas mortas, assim um fundo musical a ordena-lhe os passos, de memória a partitura à qual os dedos não obedecem nas complicadas seqüências. Feliz diminui o andamento para saber da vida intensa na inércia aparente, para melhor gozar da noite o perfume pimenta do calor que sobe da terra e beija as plantas.
Morrer sem antes provar da vida o sabor intenso, nunca numa noite assim, diria o poeta. De uma casa de luz mortiça do fim da rua vem música seguida dos estalidos do rádio, vulgar estorvo para a linda melodia e complexa harmonia que trazia em mente. Embora de pouca monta, é vida em variações da emoção. A casa e sua luz amarelam ao longe. Não sabia ainda, mora ali a moça com quem se casou.
Conheceu-a de dia, normalista de volta das aulas. E a namorava à noite no portão. Ela provou com ele o gosto do beijo, e sentiu o prazer de, a pouco e pouco, romper-se num abraço apertado a resistência de tornar-se mulher.
Grávida casaram-se. E os seguidos filhos mostraram para Raul que a beleza da vida era o lar, o valor do trabalho, o ganho parco mas a rotina segura de voltar para casa na saudação do Ângelus e o sorriso das crianças, a virtuosa mulher pelo batente encoberta.
Ela, sequer saia de casa desacompanhada, na rua mesmo com ele a cabeça mantida baixa, por ser a mulher do Raul. No começo estranhara, mas acabou acostumada com o Cala a Boca, ser dos homens na família a última palavra, por costume, assentara a sogra.
Ter rádio em casa deseducaria das recônditas harmonias o ouvido das crianças no repertório popular, tornadas alvo fácil do reclame comercial. Assim, ela canta velhas melodias enquanto lava passa cose e cozinha, enquanto ele não chega e as crianças estão na escola, tangos e modinhas de solteira, a solta voz e algumas lágrimas.
Ópera na venda do Abel, da meia dúzia presente três ouvintes encostados no cheiro da válvula do rádio, as vozes sumidas na eletrostática quando não a orquestra em dramáticos uníssonos encobria do dueto o pianíssimo ou o som desaparecia no ar quão misterioso até ali chegara: único dia a se ausentar e, na volta com hálito de cerveja, o disfarçado mau humor.
As crianças dormem cedo; e todas as noites o ranger da cama e abafados gemidos, provas de amor e certeza de não necessitar amantes quem pelo marido faz-se bem servida, tantas mulheres conheceu na bohêmia da juventude com afrontes ao casamento, juventude que se não vai longe relegada ao esquecimento volta, delével, sem saudades; mas guarda no corpo, aprendido das profissionais por amor em graça que sem dele nada cobrar ensinaram-lhe, as sutilezas requeridas pela delicadeza feminina no ministério do prazer.
Hoje foi o amor malfeito, tantas voltas dava o pensamento longe do corpo, os gestos mecânicos os beijos ressequidos e, se a música ao violino comandava os movimentos, era em Olga os abraços de olhos fechados que em sua mulher fingia.
O jorro líquido do amor a coroar a entrega na posse, tanto ela gosta deste momento!, hoje não veio: nunca segredou envergonhada as delícias de sentir-se vaso de seu prazer; hoje não veio e, ainda assim, envergonhada não sussurrou decepção no falso final: conhece dele as convulsões os entrecortados suspiros e cansado jogar-se para o lado em profundo sono que hoje veio em seu lugar o virar-se agitado respirar fatigado olhos abertos o peito suado; nada perguntou envergonhada por saber como resposta manter calada a boca de besteiras.
No escuro Olga luz na mente, estrela em tela de brilho próprio encarnada música de primeira grandeza ressoa compartilhados sonho e vigília; meu futuro despenha-se no esperdício do tempo, encontrasse musa de inspirada harmonia na verdura de meus anos meu talento dilatado a que alturas Olga não me alçaria. Meus filhos, barragem de meu fluxo, minha vida amesquinhada contraposta à ventura prometida.
Por trás de um grande homem, uma grande mulher, brinca a Mãe lendo sobre os ombros de Benedito os rabiscos a lápis no almaço amarfanhado pelos pendimentos de escritas anteriores.
Fosse Olga grande mulher, Raphael teria pela frente sido grande pianista. Conclui Benedito; e rasga de vez seu rascunho.


Arquivo 019 de Conto Romances
Paulino Tarraf

Data 14/01/2007

Nenhum comentário: