020 Tempos Modernos

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Tempos Modernos




Um cais nunca é bonito, por mais que porto seja colchete de união entre continentes, seguro para os navios trazem estes no convexo as sujeiras do mundo e aqui, os músculos tumescidos na faina dos sucessivos dias, não escondem as caras tristes a dor da fome, os interrogativos dos incertos dias, os estivadores. A Menina salta para dentro do caixotão de madeira e, rápida de volta pula, escondida baixo do saiote a lata de biscoitos corre que, os pés firmes e o pensamento limpo, matar a fome de um menor não é roubar.
A Menina, muda de olhos grandes, busca pelos arredores o Vagabundo que a proteja.
Quebra-se a ponta do lápis e, enquanto com lâmina afina outra diminui, nele escritor, o afã de escrever sobre a Menina e o Vagabundo em balanço de comédia dos tempos antigos da cinematographia. A Ama Gertrudes não scismava ainda falsidades na Menina mas, tais a vitalidade e presença de espírito em Vina que, entre fronhas e cobertores de seu apertado quarto de empregada no apartamento duplo, não era difícil supor tantas meninas numa.
Seria lícito escrever sobre o devaneio, no qual Vina Menina tem proteção do Vagabundo do Porto, não fosse ele desenrolar-se num tempo fora de calendário; nada mais justo, no entanto, ligá-lo como primórdio das desconfianças da Ama contra a menina, o passeio ao litoral da família de Damastor, o olhar satisfeito de senhor dos negócios de exportação, sua Senhora com novas pérolas no colar de duas voltas, Vina criança de rebrilhantes cachos e Gertrudes maravilhada com a vez primeira a ver o mar e contrariada de, num dia de tanto sol, perder precioso tempo entre homens de pescoço curto cabeça chata e costas largas carregadas de sacas de café subidas pranchas em Santos, a Menina de mãos pequenas entre gigantes dedos a lançar curiosidades ao derredor. Se ela quisesse iriam molhar os pés em Chora-Menino porém, e parecia peguilho de Vina, quanto mais queria a praia Gertrudes mais atenção dedicava a Menina aos pormenores desprezíveis dos caixilhos das clarabóias, das âncoras incrustadas de crustáceos, dos cordames de complicados nós, cheiro de peixe óleo queimado calor sem brisa madeira podre ferrugem metal.
Malvina quer!: Damastor provê. Quisesse ela areia fofa ondas marulhando aos pés, proveria ele.
Assim, a ponta do lápis quebra o enredo de A Menina e o Vagabundo, mas, confirma no Autor suspeitas de complicadas tramas nos sentimentos em dissenso da Ama Gertrudes, por todos conhecida como Julieta; acrescidas desavenças no tempo, aprimoradas no ódio, como quem coze em fogo brando e, por pausas, retira do molho escumas de gordura com colher de rasa imersão os excessos mas mantém o gosto, conforme cresce Malvina em beleza e independência é possível requintes nas histórias de começo aquecidas no calor da minúsculas cama de Gertrudes, depois creditadas pelo próprio comportamento da moça.
A Mãe de Benedito Rui, Autor, gosta da alusão de retirar do ódio com escumadeira o excedente de gordura e, madrugadeira, apaga com borracha o traço em que o filho rabiscara a frase por considerá-la de mau-gosto, reescrevendo sobre o sulco calcado do lápis recupera-a, embora também depreciasse a comparação; ela nunca gostara de cozinhas e cheiros afins.
Contudo atiça-se no Autor a gana de explorar escritor as suspeitas das complicadas tramas. E o comportamento da moça.
De menina a moça tomam corpo as medidas da perfeição. Era notório o amor da Ama por VinaMenina MalvinaMoça. Acostumada a servi-la aprendera incontinente executar os comandos com rapidez traduzidos do cenho. Nunca o imperativo direto, mas a subordinação no complemento. Na infância semblante súplice, lábios caídos rosto contraído; ou afogueada se por demais quisesse um mimo. Os cachos louros, as negativas encontravam nos balouços deles a confirmação do desagrado. De costas, os braços cruzados, não havia como demover-lhe o amuo. E, dias seguidos, sofria a Ama a ausência de seu doce olhar. Ausências que se firmaram em requintes no tempo escoando: fechava-se por horas seguidas no quarto; adulta por seguidos dias. Quando se mudaram para a capital era nos cômodos para ela reservados que, trancada, dela sabia Gertrudes não estar morta porque, nas horas altas, beliscava das refeições deixadas na copa a roupa usada na cadeira aguardavam limpeza o dinheiro contado na fruteira para as compras; e não se ouvia no apartamento contíguo qualquer som indicativo de presença. Este comportamento, e a total independência, deixaram Gertrudes solitária; e povoada de suposições.
Seria pouco original atribuir a afitos malévolos os enredos da Ama, e tingir de malvadezas os pensamentos que inocentes povoavam as noites insones longe dos olhares de Gertrudes: Vina demora nos claros abertos pela ausência. Em noturnos tecidos, fictos de Gertrudes para alívio das preocupações, neles Vina protagoniza principal, pessoa de bem servir ao próximo, a grandeza moral emoldura seus feitos mesmo que para o vulgo carecessem do lugar comum dos atos aceitos numa sociedade de rígidos preceitos.
Os inventos noturnos de Gertrudes trazem à scena Malvina, ora terrorista pela anarquia ora, quando não freira de ilibada virtude a serviço de Cristo casta esposa tal devota de Santa Cecília teria sido mártir vivesse na terceira centúria cristã de uma Roma de rito pagão, era enfermeira da Cruz Vermelha a inspirar romances a prazo e preço fixos aventurosos nos bocejos crepusculares de vidas comedidas ou vigarista a fingir-se cega florista para extorquir dinheiro do Velho Rico em simulada cirurgia e beneficiar o pobretão perdido entre as correrias do populacho de uma metrópole atropelada em buzinas de esfumaçados ares.
Como todas as manhãs na rua atrás da igreja, à porta do palacete, Gertrudes já resolveu o rumo a tomar; se à esquerda reza rápida em Santa Cecília caso estivesse Vina em dias de humores delicados, à direita Arouche caso Vina desaparecida de suas vistas sabe Deus onde andará a sapecar enredos em histórias curtas; hoje saiu para moroso passeio. Parou na casa dos cristais, a vitrina mesma uma jóia de madeira e vidro abaulado, copos e compoteiras vasos e fruteiras desigualados chanfros os centros de mesa cestas de esmeradas tranças ou barcaças a vagar translúcidas, os brilhos deslizantes no movimento do olhar.
A Escola Normal, e na praça as normalistas de azul fita em laço nos cabelos, brancas blusas e meias rodeio acanelado da canoa dos sapatos aos joelhos em três quartos, gravata e caderno de escudo ao peito esconde e mostra, sorriso franco rosto encantador fingem nos olhos distrações.
Também Gertrudes finge distraída colheita na manhã do sol os raios brincalhões de solta alegria. Minha Vina jamais entre elas, canteiro de graciosas flores, surgisse minha bela de frescas pétalas, emurcheceriam. Quando bem sei, não se misturaria altiva às pequenas lolas quando muito, posto que bem recordo Lola, mulher dos equilíbrios incertos em Borboleta dizia-se andaluza mas quando muito lusa e, recordo-me bem, de sotaque copiado axilas peludas buço oxigenado e percutisse castanhetas o som rachado feito matraca de semanassanta ainda ouço bem quanto bem recordo sedutora não era, quando muito carmen de matutos pito de palha fumo fétido. Vinha com o Circo, a Lola Malabares, se chovia as carroças no barro atoladas, da lama não se distinguia a bailarina conquanto bem recordo no palco reinava vestida de várias saias múltiplas franjas multicores sem salpico de qualquer vergonha, as pernas à mostra no volteio das danças no sapateio enérgico do flamenco.
Bate o vento, debalde o peso da lã a saia mostra mais do que queria a normalista. Riem as meninas. Minha Vina reflete da educação das antigas o pudor na compostura da roupa o recato dos botões presos nas casas, com dignidade de dama um broche encerra no colo os segredos de moça. As pequenas lolas não! Por baixo da gravata desabotoada camisa a pele insinua-se alva. E mostra atrevidas saliências. Minha Vina, da mesma idade, têm-nas vetadas ao profano alheio. Meus olhos velam-se no respeito, quando a secundo desde e sempre o faço no trocar de roupas, se resvalo a pele cor das rosas da auréola de seus pomos virgens encrespam-se e, inocente púbere, abre em sorriso os risos mais acanhados. Qual voz teria Vina, quais os sons de minha menina. Seu rosto ilumina alegria em argentino silêncio. Assim como não precisa de voz a feição da contrariada.
Além de bela superior inteligência, nunca freqüentou escola condição de muda ser: para ela Damastor reservou aulas particulares, professores os melhores em cada área, cultas matérias. O catecismo e o temor nos dez mandamentos de Deus e nos cinco da Igreja contidos, pela bondosa Donine ministrados em casa. Admirava-se a Ama que, durante cada reflexão nos ensinamentos, Vina fechava os olhos contricta para imbuir-se da Graça; vale dizer não pensar assim acrescidas novas experiências: tenho certeza continha o riso a dissimular o descrédito. A Primeira Comunhão obteve em cerimônia só para ela, a igreja enfeitada e, qual num casamento entra Malvina vestida virgem de branco delicado terço de pérola livro de orações em madrepérola: nunca dantes dada a público, corrige Benedito Rui que entendia ter sido no casamento de Damastor apresentada aos olhos maravilhados dos convivas: loira de cachos, o coração só de Jesus.
As primeiras letras nasceram da paciência mestra do consumir-se iluminando de uma Esther de Seixas; Dona Penita Spíndola simplificou-lhe as Matemáticas, Don´Ana Bernardim do Valle o Desenho com as gregas simples cruzando-se em compostas e a Álgebra contou com os prestimosos ensinamentos de Dona Tita. Sylvia Mendes declinou com ela, do Latim, os apaixonantes casos as complicadas regências. O que para outros seria alfabetização para ela o gimnasial, a continuar-se aqui com renomes nacionais.
As moças bando em flor, trios pares quartetos, fazem hora pala praça. O cigarro escondidas entre livros as baforadas, redesenham as bocas de vermelho, a pinta preta na face o pega-rapaz curvo na testa. Os moços chegam devagar, postam-se em fila, e elas, para cima para baixo exibem-se aos elogios sussurrados. Aos poucos a praça guarda-lhes o vazio. Algumas, de menor cabedal, levam-nas o bonde da São João rumo à Barra Funda, o circular avenidas para a Liberdade; as do Campos Elísios aguardam venham buscá-las os pais, as governantas, os motoristas em reluzentes carros.
Eu, a Praça, a Escola Normal, os raros passantes. Hora de ir embora.
Perto do lago uma bela mulher e enorme susto: florista de roupas simples duas cestas de flores aos transeuntes, acompanhando os som dos passos, num gesto oferece violetas e camélias em maços.
Pensara ser Vina, tanto eram seus os traços do rosto morena tez escura cabeleira por diferença, os olhos do mesmo azul agora opacos atravessam cegos Gertrudes e seu espanto. Confirma não ser Vina ao escutar a bela voz cantora a oferecer no vazio:
senhor senhora compra-me violeta
precursora de feliz primavera
frágil camélia
das belas damas
fascínio
em flor.
Também o sorriso, dirigido a quem pegar, não tem a vida de sua Menina. Refeita segue caminho rumo à Barão, atravessada a praça.
Certo de que cega a Violeteira, um vagabundo dela em silêncio se enamora, sentado a reservada distância admira-se que não possa ver quem tão bela lhe enche de alegria a vista. TempoModerno, apenas da Violeteira é assim por esse nome conhecido, em segredo por ela batizado, a única que o vê na Cidade de rara trégua no intenso movimento, calor intenso tempestuosa chuva horas mortas no sllêncio, por todos tida como cega, se a ele deu o nome de TempoModerno jamais teria visto alguém com vestes tão antigas o colete sem botões as calcas largas por um cordão franciscano amarradas, o paletó no frio ou no calor recebe um lenço de branco alvor no bolso e uma camélia na lapela, a pétala do bem-mal-me-quer por partir. Retoma o caminho para Santa Cecília pensando que nem é cega a florista sequer muda minha menina, quiçá uma e outra mesmas atrizes para diferentes enredos; com certeza não sou eu a cega embora muda para os segredos que requerem tumba. Eu, eu não preciso ver para crer; creio e calo.
Violetas.
Violetas e Camélias.


Arquivo 020 de Conto Romances
Paulino Tarraf
Versão de 21/11/2007
Sobre Versão de 10/10/2007

Original de março de 2006

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