04 São José, das botas

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São José, das botas


Cidade.
Os bairros, ela no centro. Os bairros têm nome, mas pouco indicam os nomes que têm. Dito um de Boa Vista, infere-se de boa vista fora em tempos outros; quiçá?, descortinava beleza de encher os olhos, quando uma colina defronte a outra não se entediava na monotonia do branco sujo de casas caiadas e quintais de chão desnudo.
Mas é de Cidade apelidado o centro. E por Cidade atende desde quando povoado crescia cidadã e dos sítios vizinhos lá longe se vinham às compras, aos ladridos os cães voam soltos os quero-queros rasantes em barulhento ataque como se guardicães fossem dos pastos separados por porteira, o carril marcado na areia pelas carroças os bois pesados adiante, excitados na vinda os homens no lombo cansado do cavalo na volta sonolentos da pinga.
É Cidade. Já foi selva. Relvas cercam-na, agora.
São córregos os rios caudais d´outrora.
Só dentro dos sonhos de Amandio tanta água em tal fluir, dentro dos rios as pirogas a pendepender dentro delas o bugre rema desconhecido o porvir a sonhar. Nos sonhos de Amandio esse rio obedece o apelido cristão de Piedade deslembrado o verdadeiro nome esvanecido com o derradeiro suspiro por onde a alma pagã do último bugre soltou-se, empós o bacamarte descarregar nele o chumbo da conquista. Vive ainda o Piedade, perdido entre os outros que a custo se arrastam córregos colados nas margens, carregados de detritos.
Boa Vista e Cidade, uma colina olha outra e se de boa vista foram, magica Amandio fossem copadas floridas, ondulantes coqueiros, entrelaçadas trepadeiras nas árvores esguias que se via: separam-nas um córrego Heborá, leito de água e mel. Heborá, pelo nome tapuia, testemunha ter ali existido a alegria dos bugres, deduz Amandio piscando os olhos descolorido azul.
Lera em almanaque que falar Heborá significa dizer: Mel cabaú pinga do oco dos troncos, saburá de gosto doce amarelo na cor, não duvidava o bugre ter jataí entre as grossas cascas, se tem urucu se tem guarupu tem mel se tem abelha de tarjas pretas riscado de ouro nas patas cabeça e peito; escorre o mel feito regato nascente para o rio a circundar a colina onde menina crescia a cidade. Assim nos sonhos de Amandio era caudaloso o rio e hidromel divino em seu cântaro corria, Heborá escansão.
Ladeando a colina, no oposto do Heborá, cópia d'aguas é Canela um rio que se chama assim de batismo pelo cheiro talvez pela cor quem sabe o gosto.
E mesopotâmica ela nasceu.
Despejam-se vassalos Canela e Heborá num rio maior, que nome não tem tanto é vária a cor se chove muito chamam-no Pardo, Claro em manhãs d'estio a ele se referem, Azul refletido o céu das tardes Verde tinto espelho das matas se dele se enamora um poeta: Preto no mor das vezes, esta sua sina. Saberá Deus? escandescido pelo turbilhão dos peixes rio grande nomeavam-no reverentes os tapuias na inocência de acreditá-lo eterno.
Paralelo a esse rio preto tem a Boa Vista uma Boiadeira.
Boiadeira rua, tráfego de gado a mudar de dono, ou de vida em matadouro. Qual as outras ruas é descalça a boiadeira, terra dura leito de areia. Sempre verão, tardes soltas, o melhor da chuva são as ruas viradas em rios que dão pé. Nas testeiras das casas cascatas a despencar, no enxurro da chuva finda navegam barcos de papel. Diques de gravetos e pedras, barragem d´água barrenta.
Ali na Boiadeira os pés descalços do Meninico conheceram areia quente, estrepe agudo, caco de vidro; áspero muro farpas da cerca, varar vigilância tomar de assalto os quintais; casca grossa do tronco da mangueira arcada de ouro doce de chupar. A pedrada derrubadas despencadas de madura, amarelas de sol caídas verdes de vez, mangas delícia sem par mesmo se agraz.
As ruas desembocam nos rios.
Mas Meninico não foi tão longe quanto curioso se impelia. Assim, missa na Aparecida da Boa Vista o mais remoto sítio visitado. Do oriente seus pais vieram de trem.
Em casa os filhos são a língua viva da mãe. Os ouvidos, quando para a rua vão, voltam carregados de palavras novas. Há sempre um verbo complicado de conjugar; futuros complicam-se no passado irregular. E pelos quarteirões quadrados de casas esparsas de porta em porta vai pelas mãos da mãe, sabonetes espelhos e pentes ramonas e alfinetes, a vender miúdos e garantir a mesa.
No almoço não falta a coalhada mansa da vaca criada em cercado, azeitonas pretas d'Hespanha, refrescantes pepinos perfumados de verde hortelã, doce alface de mistura ao agre almeirão, vermelhos tomates da horta em quintal não faltam.
Hoje o pai não almoçará:
O Pai. Os pés pelo sertão, atalhados plantios cambaleia em pinguelas sendas torcidas na mata a mala nas costas fere a carne dos ombros o couro cru, males de uma viagem sem fim de ofertar de sua mala as miudezas abrandamentos da vida dura do colono italiano que, plantado na terra prometida de um viver melhor, roça sem fim. Solitárias manhãs, tardes de ensolarada indecisão, fecha-se o céu chuvas em anteparos taperas de beira-estrada, abertas nuvens, os pés na lama onde antes areão e pó. Na mala o futuro. A mala, dentro os miúdos, é toda riqueza resumida. Giro para o futuro arruinado: Se molha. Se desbota. Se roubada for.
Se, negror que interrompe o sono, irrompem sonhos pesados de interrogações atiradas na noite de denso horror: Se?:
Minha Terra, que será dos meus!
Meus Pais, que será de mim!
Lá no oriente pesava a lavoura. A mala pesa aqui. Neve ou areia, lá ou aqui, o mesmo futuro deserto e frio.
Terra de meus Filhos, que será de nós!
Nas noites árabes mil e um desencantos, quando não o vergão da guerra os gafanhotos a devorar os sonhos, tão rapinas gafanhotos de enfurecida fome furam o chão e desmiolam as batatas plantio em duro labor, livre o solo das pedras sangrantes unhas, o arado na terra a mulher puxa feito mula o homem empurra feitor, num raio de tempo o inseto coriácea guerra devasta. Aqui, sem o lavor da língua não brilham os oásis na sonhada promissão. Se?
Lhes, a mala nas costas, estradas sem fim. Dia inteiro sem água de beber, deserto feito pelo medo de nos regatos venenosa ser apesar do prometido frescor entre pedras corredeira, repulsiva nos casebres por infecta da pobreza suja apesar de gentil oferta em pote aberto retida; dias sem comer até s´achegasse nas terras dos Comar, alemães de origem, a limpeza com feição de saúde recupera nele a confiança. Não falassem a língua de minha terra, entendiam ao menos meus sinais: palhas no paiol para dormir, água de filtro em caneca de lata, banana e um pedaço de pão. No paiol espigas de milho, grãos nem tão duros assim.
Lhes, imigrante do padecer. Lá e aqui, o mesmo aperto na vida, não há como fugir apenas trocar o lugar da dor a se enfrentar.
Primeiro o mar em navio negroreiro porão onde feito gado de segunda classe convivem na disputa por lugar, alfândega e quarentena na migração, rechaçam-nos olhares oblíquos como se a peste aportassem ratos, o linguajar estranho fere os ouvidos sem tradução; depois a longa subida de trem estrada de ferro a fugir do mar a íngreme serra e se há belezas floridas entre os trilhos e entre escarpadas pedras o azul do céu nas verdes águas era aflito o choro da filha era desmedido o medo da chegada era o negror senhor de suas pálpebras a invadir a alma como se?
O trem chega na estação sem que a viagem chegue ao fim. Baldeação. Mar de gente, perdidos sem saber ler, ouvintes surdos falar sem se fazerem compreender, no vagão sentados resta o desamparo de qual estrada aguarda-os no fim, se fim houver algum.
Os trilhos de ferro agora buscam no planalto o sertão, novidade e terror, se há surpresa na imensa planura onde vales ondulam nuvens ondulam os trilhos nas curvas o apito de ondulados sons, chacoalham os vagões e o trem fumaça, na fumaça faísca, queima a faísca na pele a fumaça arde as narinas; e fede. Minha Terra tão longe meus irmãos e meus pais nas montanhas nevadas entre cedros sagrados, o cansaço e o sono dormido acordado sonha males negrumes sem fim. Se.
Lhes, o Pai. Quando volta do sertão, é o silêncio dos filhos. Até o caçula se chora, tuge. Engatinha miúdo, os olhos cheios de boiada, berrante e aboio mugidos e pó na rua descalça. Os meninos varam quintais, para longe da corda inquerideira da mala com que podem apanhar impedidos do solto brincar brigar xingar e de alegria gritar.
Dos filhos, um mais destravado. Nasceu de olhos abertos, respirou dos ares a vida oferecida sem chorar, do peito de amor o leite oferecido sem nunca chorar mamou. Jamais apanhou.
Suspensórios, duas alças num só botão preso ao cós, Meninico, a cabeça coberta os olhos vão em busca de novos trilhos nas estradas diferentes margens em novos rios, aprendiz de jamais esquecer, nas lembranças somar e mais aprender.
Arbatacho!
No chão o canivete aberto para a ferrugem.
Rabatacho!
Beirando o rio, hoje preto de águas pelo chumbo do céu, o mais longe que foram de casa. Meninico feliz; anônimos assentam os ferros prolongando a estrada de trilhos, e o rio, fendas para o sertão. Meus pais vieram do oriente, de trem.
Um canivete perdido no chão.
Todos os Meninos Vizinhos puseram no canivete os olhos, mas só dois puseram as mãos: Garnisé, o irmão mais velho de Meninico, e um menino qualquer de nome chamado Zinho. O Zinho qualquer dizia que era dele o canivete no chão. O Garnisé não abre a mão. Os dois de quatro, a quatro mãos, pares de olhos às dezenas sobre a rinha do Garnisé e qualquerZinho brigões.
Garnisé, teimoso, não solta a cobiçada prenda.
Larga!
A boca fechada em lábios finos, uns dentinhos, os olhos teimosos as mãos mais.
Larga! Grita o Zinho: Larga, turco rabatacho!
Meninico conhece esse irmão garnisé; apanha mas não pede perdão, perde mas não cede: turro fungando, ele e o canivete um só.
Larga! Larga, roubatacho, turco preto ladrão!
Meninico conhecendo esse irmão garnisé prepara-se para o pior.
Garnisé, a mão abre do canivete e fecha em soco direto no queixo do Vizinho.
ZinhoQualquer armado de ódio gira o braço e o canivete desce.
Rápido salto, Meninico permeio. O canivete ferrugem vem. Um rasgão na camisa ferido peito sangra Meninico. Mas não há dor que o atalhe. Arranca do Zinho o canivete ferrugem de sangue marcado. Um soco e um chute, soco em cima chute em baixo, um urro ganido. Um calço rasteiro e Zinho vai ao chão; tomba sobre ele o Meninico, o canivete a prumo pronto para matar. Pendepende o canivete suspenso. Arranca-se na carreira o Meninico, o canivete nas mãos, os choros deixados para trás.
A rua desemboca no rio. Dentro jacarés. São deles as couraças fingidos troncos. Cobras, delas os rabos finos simulam-se raízes ribeirinhas. Bocas, não é remoinho de vento n'água a gula aberta do dragão. Franças d'árvores no espelho invertidas, na verdade entes das profundas soltas vastas cabeleiras: eis que o Heborá só é rio amigo dos bugres pelo homem abatidos.
Eu, assassim. Matei o Zinho, a camisa dele manchados de sangue ela e o canivete.
Corre margeando o Heborá, e uma ponte sobre o rio aparecida liga a Boa Vista à Cidade; e ele à liberdade.
Ponte e Cidade desconhecidas. A colina aponta para o céu. As profundas é lugar de assassim. Dor no peito, inchado de sangue o coração, é assim assim que se morre se uma faca fura de fora. Não volto para casa, conheço meu pai e a corda que me castigará pecador.
Meninico apalpa o peito apalpa o rasgo a doer e alivia na alma a dor que desnecessária sente. O sangue na camisa de Zinho é meu sangue vertido do peito que, ferida a carne, dela derramou-se nódoa no derrotado inimigo. Inocente. Não peco, se defensor do irmão. Aguarda-me o céu, campos elísios do guerreiro no colo da Virgem repousar dos combates.
Resta meu pai: é deixar o tempo correr, chego manso e peço perdão paizinho. O Garnisé, esse meu irmão teima e apanha, apanha e teima e agora tanto apanha que sobre ele se atira a mãe para desviar da corda a carne do filho teimoso e sobra para ela a dor do vergão. Não volto já.
No alto da colina a igreja em construção. Encantado Meninico vai.
Anônimos vão em direção à Praça da Matriz para a igreja em construção de orago São José; serventes de pedreiro saídos da roça opilados caminham amarelões, fortes apesar de empambados. descalços brim desbotado remendos de per si rasgados, enxadas nos ombros não vão os Anônimos raspar o capim sequer dos plantios enfrutados proceder colheita mas, amassado barro medido ao prumo, tijolo a tijolo em Catedral erguem a nova igreja. Mais encantado ficou Meninico que encantado veio:
Eis a Cidade, paralelepípedo no leito das ruas ladrilhadas as testeiras das casas niveladas, meada de fios equilibra os postes de luz e as lojas em fila expõem-se comerciais, a buzina passa e o carro se aproxima, o cavalo relincha o burro empaca. Na janela olha a mulher envelhecida. Um pedinte na calçada esmola.
Os tecidos expostos sobre suportes peças de linhos e cortes de casimiras desfraldados porta afora pelo vento, bandeiras do comércio. Em cabide, prego na parede, um guarda-pó e sob a gola lenços coloridos também ao vento saúdam os que pensativos passam. Ringe a polaina, olhos abotoados no peito dos sapatos, o senhor faz tripé na bengala. A senhora passa e o perfume fica. De comistão ao sopro da roupa cheirando nova nas prateleiras fixas. O bafo do caporal que passa fica. De comistão à queima da gasolina deliciosa. Ao ronco do motor o som dos saltos nos ladrilhos, nas pedras trisca a ferradura, vagas vozes no ar s´evolam.
O padre Damiano louva Jesus Cristo. Louvado seja, retribuído por Jaime farmacêutico, que surpreendido fica:
É sangue no rasgão da camisa desse meninico? pergunta agarrando-o pelos ombros, ao tentar fugir.
A farmácia é adocicada bala. De alcaçuz, diz Jaime ao dar-lhe uma dentre as pastilhas, confecção do aprendiz do farmacêutico.
Com aroma de vinícola entra renque pautado de sorriso claro os limpos padres vestidos pretos, allius post allium, seguindo Damiano. A tonsura repete-se brancura em nacarada gola e os dentes perfeita dentadura. Louvado seja Nosso Senhor, barítonas vozes ecoam corais de todas as partes: a farmácia uma nave laica. Iluminada do sol feito estilhaços tais vitrais os vidros variegados dentro cheiros cativos dos eméticos vermífugos emolientes e estípticos sob rótulos manuscritos em gótico antíquo, da janela a catedral pronta quase é estampa no tempo imóvel.
Ordenados tabuleiros, brancas e pretas tábulas, prontos para o jogo das damas os padres na calorenta manhã. A cada gesto desprende-se o odor de vinho de comistura ao adocicado alcaçuz; destampado o frasco embebe-se o ar do'spírito d'álcool e a mão do farmacêutico em lavabo d'assepsia pronta está para o sacrifício do Meninico. Gritar eu não grito que de nada adianta. Na branca nave o vozerio em rosário de risos clericais levanta-se do chumaço negror de batinas a comer as damas e no algodão um milagre de transformação d'água em pura rosa espuma oxígenogerada explica Jaime o farmacêutico, a mesma substância a lavar das feridas suas pestilências: isso pacifica a alma do Meninico.
Silêncio.
Graças damos ao Senhor:
Comidas as damas e as serviçais branca ou negra, comprazem-se os padres vestidos pretos, num pós-prândio sonambúlico, em olhar a catedral perfeita, sua torre ainda a meio céu erguida. Vista postal da farmácia. Pronta será nosso cartão de visita, repetem todos cidadãos.
Emocionado silêncio, a pouco e pouco preenchido pelas barítonas vozes elevando-se devagar com ridentes comentários que pronto, o altar-mor, aguarda em seu nicho o São José, orago. O farmacêutico, pincelando mercúrio cromo na ferida, quis saber por que não ocupa ainda o orago seu lugar honorífico. Argumenta Jaime: Amargou, o Casto Protetor, secular esquecimento em choça de bárbaro bugre no aguardo do resgate cristão. O luxo de um nicho, entre luzes fluorescentes flores de corolas lâmpadas de piscar colorido recebendo o resplendor do ostensório ao deixar sagrada a hóstia o recato do sacrário, seria condicente moradia.
A causa são as botas; sentenciam os padres em curta sermoa.
Já encomendamos uma linda imagem de serena beleza as vestimentas com bordas ourejadas em grega composta. O das Botas ficará na lateral direita sobre estrado de madeira, qual relíquia antiqua.
Meninico olha o peito, tinta em vermelho a ferida; de relance vê transpassada a face de dor do farmacêutico, que apela indagativo e indignado:
Pelas botas!
Não só. O todo merece reparos. Entoam coro coral os curas: em privado concílio decidimos, e decidido está: outra imagem ocupará o nicho mor, o das botas o lateral.
A ferida esquecida, o farmacêutico empunha parada no ar pinça feito lança na ponta chumaço vermelho de onde o mercúrio a prestes gotejar:
As botas, protetoras da cidade!; profere a boca pecada qual fruto seco, imbecil beiço em queda quase-cuspo chupado de volta, o céptico farmacêutico, a gota do mercúrio cai não cai.
Botas nada protegem, atalha padre Damiano, corifeu entre os coreutas. Erudito prossegue: são as botas um arranjo popular, gosto barroco de medievos artesãos. Se não vejamos:
Túnica curta, roupagem de carpinteiro, era esse o santo José da Idade Média, bastão recurvo no severo Gótico que se alindou de flores no Renascimento. Na fuga para o Egito trajos de viajor sobressaindo-se capa turbante esvoaçada ao vento ou chapéu de abas largas caídas em sombreado semblante, filho da preocupação. Botas, nunca.
Outrossim outros santos:
São Matias substitui Judas como discípulo de Jesus; vestido qual demais discípulos de pálio e túnica suas imagens se vestem. Nele difere pender de seu pescoço corda de enforcado, suplício de mártir que por vezes carrega nas mãos. Mas a partir de séculos dez e anos quinhentos mais, a Matias santo troca-se a corda por uma lança quando não por um cutelo. Nem nos protege a corda, nem lança ou cutelo protegem ninguém; sendo sim essas armas gosto do artesão. Nada implicativo com Matias.
Corifeu recita padre Damiano o nome de santos outros. Coristas os demais nomeiam, em responso, vestes adornos atributos, cada qual em diferentes alturas de som a duas vozes ou três por vez em cantochão à maneira de ladainha. Jaime farmacêutico escuta; da pinça o mercúrio goteja sanguíneo no ladrilho branco da farmácia feito capela:
São Benedito, franciscano siciliano filho d'escravos africanos, é marron o hábito, branco o cíngulo e, se flores na esquerda o artesão esculpe no lugar da cruz então será Benedito Santo das Flores a poesia que no altar veneramos nós.
Sanctus Benedictus, pai dos padres bentos, cruz peitoral sobre a cogula, u'a mão lança bendição d´outra pende o báculo abacial e, quer imberbe quer barba traga na face por variação, diversifica também o popular artífice esculpir junto dele um cálice com serpente entrelaçada ou um corvo prendendo pedaço de pão no bico calado. Atributos do Silêncio, Regra da Ordem, nada a ver com proteção.
Santo Elesbão, rei etíope. Significa Abençoado seu nome Elesbão no pais da Etiópia. Convertido, além de igrejas tantas em seu reino levantar, a Jerusalém envia sua Coroa embrechada de pedras variadas na espécie inúmeras cores elevado valor: eis porquê numa das mãos é uma igreja o atributo de freqüência maior em suas imagens. Rei sem coroa, exposta a tonsura circular.
Santa Bárbara, senhora dos raios, no batuque confundidos fanatismo e religião abstida fica a Igreja de manifestar-se. Mas a palma nas mãos, não é a palma e sim a santa quem dos raios nos livra da electrificação.
São Miguel, um demônio aos pés sujigado ou pesando das almas sua sujidade. Estátua ou estampa, nelas assim se configura: lança ou balança nas mãos, é a preciosidade do artesão quem dita. O Santo Núncio, anjo que é, as asas diferenciam-no de São Jorge, romanos os dois nas vestes guerreiras e São Jorge eqüinomontado, que tem a ver o cavalo com a Fé? Quem nos protege, São José ou as botas?
Grave pontifica Damiano: Vida de santo e santa paz em vida não se conjugam como caminho para Deus. Ensinam-nos os beatíficos que, para a felicidade perfeita no eterno, somente a dor é seguro guia.
Uma pincelada desatenta desenha no peito do Meninico uma chaga aberta a escorrer mercúrio que, enfático barroco, berra nas cores o martírio.
Coristas, os padres sopesam: nos sertões do tempo, época de intensa barbárie vem o conquistador, no seu comércio beduíno de bando armado com ferocidade mamaruca, pondo mataria abaixo sob calcar das botas, aos vencidos se prisioneiros não escravizam matam: o mamaruco sangue híbrido carrega n´alma ferocidades somadas.
Corifeu, Damiano pondera: e o bugre recém convertido, ou aceita o baptismo como penhor da Fé ou é lupina ira revestida de pele cordial a subverter com subtilezas os valores da superbíssima Madre amada Igreja.
E grave Damiano monodia, intercalados apartes dos outros padres, confirmando em baixo contínuo:
Além das botas, as feições. O artesão, que de São José talhou a imagem, talvez fosse um recém convertido bugre.
E o São José não só calça botas, atributo do conquistador, como marca o artesão o próprio rosto no ocre da pele nos malares pontudos na testa corcova no cabelo grosso lisa barba rala as origens de conquistado.
Corifeu e coristas: São José das Botas, misto de vencedor e vencido.
Corifeu: Merece o altar-mor, à altura da Cidade de civilização em grau elevado, merece a Cidade um São José de finas feições talhado, amarelo pálio de gregas pregas ombreando túnica em roxo desmaiado, e nas mãos o lírio da castidade nos braços o Menino filho seu por Santo Espírito gerado, ondulados cachos cabelo e barba, paternal sobriedade.
Ao São José das Botas, o museu de um altar ao lado.
Damos graças.
Quero ser aprendiz de farmácia. Se.
Apenas doeu a injeção. Meninico volta para casa, o irmão já terá apanhado, o pai mais calmo, se!
Atravessa o Heborá. As mãos nas traves da ponte. A seus pés corre a rabeira do tempo feito águas do rio. Não há trem para a coragem dos homens. A pé na mata intrincada de clareiras falsas em sonhos escuros, a coragem empurra os homens para dentro do horror. No Heborá mães brincavam com seus filhinhos, desatentas ao perigo do iminente ataque. Sem piedade. Pólvora contra curabi, a frechervada.
Resta um rio onde despejam os afluentes suas águas variegadas, se chove muito Pardo, Claro em manhãs d'estio, Azul refletido o céu das tardes, Verde tinto espelho das matas, Preto no mor das vezes, Rio Vermelho agora pelo cruor derramado; e numa choça recém talhado resta um São José, testemunha dos sonhos comidos pelo Negror da Noite, onde aguarda envergonhado o museu de amanhã. Se.
Depressa meu filho, a mãe ainda não preocupada, toma banho, troca a roupa, calça as botas. Você vai com seu pai, às compras, na Capital.
A mão acarinha a chaga:
Você menino de valor, disse a mãe, você meus olhos.
O trem rumo ao oriente.
Rápida a paisagem solta-se.


Arquivo número 004 de Conto Romances
Paulino Tarraf


Versão de 17/08/2007 sobre Versão de 01/06/1999

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