011 Amandio, doce memória

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Amandio, doce memória

Damiano, cônego, pensa com seus botões muitos do saio ao colarinho clerical: um dos jazigos na torre da Catedral com certeza eu mesmo compro e os ossos de Amandio para lá trasladaria não fosse a circunstância pouco cristã de seu passamento.
Amandio, não teve em mim o amor à altura de sua renúncia. Morreu para salvar-me; creio Deus todopoderoso faça justiça e repouse aquela alma criança no colo santo de nossa mãe, ambos no paraíso como ele queria; interditassem embora as leis canônicas de aos céus alçar, maior é Deus em Amor e Sabedoria. Farei empenho aqui na terra tenham os queridos ossos de meu irmão jazigo no mais alto da torre da Matriz, de onde pelos séculos dos séculos contemplará a Cidade, cidade que ele almejava tivesse ela um belo jardim cultivado de cima a baixo, sucessão de praças, da capela da redentora à paróquia da Maceno.
Assunto preferido de Amandio na barbearia, na farmácia, na praça, nas ruas do comércio, desde antes falecesse a mão amorosa ouvinte de seus sonhos mortos pelos homens práticos. Que se implantasse para a Cidade um traçado de concepção ousada: perfilados quarteirões de ibiraobis sapupiras sibipurunas um bosque onde não faltassem a majestade do guapuruvu e da espinhosa paineira o fruto macio sedosa paina, que acima de todos crescesse a tambe´mbuya madeira leve ouro que no azul flutua aipê.; águas em fontes aos jorros, algumas delas ao natural quantas bicas vertidas pois sendo a Cidade mesopotâmia, lado a lado Heborá de mel o fluido leito e Canela de cheiros do oriente, correndo ambos para o rio mãe colo das variadas cores conforme o céu em ânimo resposta ao amor dos filhos complacente azul contrariado pardo muitas vezes preto tanto sofrido o coração, sem dúvida era questão de procurar os olhos nascentes borbulhões e, ao invés de tapá-los com tijolos e cimento facilitar escorresse, como quando os índios daqui antigos moradores bebiam o mais puro cristal; muitas fllores, quero crer você não acha, Damiano?
Damiano não acha; preocupam-no as almas, nem tanto os viventes.
Assunto preferido na barbearia de Amandio, onde somente Damastor o ouvia; os fregueses outros vinham à busca de uma sonata indulgente para os percalços do dia no conforto da reclinada cadeira. Ele falaria sem descanso de seu sonho de arborizar. Duro aprendizado de calar-se tanto advertido por Damiano, cônego. Entendeu seu ato de muito falar como falta grave, verdadeiro pecado se o requestava um padre das mãos abençoadas por Deus, com direito de desligar na terra desligado ficar no céu. Boca fechada obediente; os olhos reviravam nas pálpebras, os lábios em mussitação. Inquirido responde: converso com minha mãe que está no céu. Para gáudio de Raphael, aprendiz de alfaiate, ao ver em Amandio poderes mediúnicos por se desenvolverem. Enquanto a tesoura de Amandio brande barbeiro no ar Raphael alfaiate, gaio, pensa espírita quantos benefícios das mãos de Olga adviriam ao ficar ele enfim livre de seus obsessores. Mas Damiano, consentir jamais.
Voltava ao assunto do querer das mãos de Olga o aprendizado de visitar sua mãe. Pois a mãe o perdoava quer nos sonhos, como em vívida presença perdoara-o, quer em vislumbrada visita derramando sobre ele olhar de azul benevolência, embora o castanho dos olhos dela lembrassem tâmaras passas. Passageiros os visos retornam oníricos ao limbo apagados; resta a sensação de um estar, bem ou mal. Nas mãos da mãe quanto queria a face colocar repousada e os jardins do mundo em frescor aquietarem-lhe o espírito: tantas vezes assim fizera, a mãe sentada as mãos postas enxugadas lágrimas. Quem sabe Olga; implorava para o irmão. E penitências impostas por Damiano, ajoelhar-se frente à Imaculada Conceição; e os olhos da Santa em tâmara passa perdoava-o azul.
Voltava ao assunto do jardim quando das oportunidades aparecidas. No farmácia do Jaime, sobre o balcão, os jornais do dia amarrotados de tanta leitura cediam suas adormecidas notícias para acalorado discutir a guerra iminente. Repente introduzia Amandio: como seria belo transpondo o Canela saísse da praça alameda arborizada em fícus direto para o Cemitério uma Avenida da Saudade; ou na calçada enquanto concentrados no jogo de damas apenas assentiam com a cabeça quanto ao assunto insulso, na espera de chegar o padre que o carregasse. O duro olhar de Damiano cerrava a boca de Amandio pondo seus olhos revirados e em Raphael, gaio, a certeza da presença da mãe.
Na casa dos 2$000, em frente às vitrinas expostas louças e panelas do sábado à tarde, um grupo disperso logo formado assim derivasse ele do assunto da guerra vigente para o lindo nascer do sol seria se, cercando a estação de trens de ferro necessária à civilização, aipês flutuassem amarelas primaveras.
Voltasse ao assunto as pessoas devagar saíam para afazeres repentinos, Damastor não. De bom grado lhe abria a alma, como palmas fossem das mãos.
Até hoje Damiano é grato a Damastor, quanto sente remorsos de abandonar Amandio ao fio da navalha.
Único freguês na barbearia a permanecer atento enquanto Amandio aparava-lhe o pé do cabelo, abrindo mão de discutir conseqüências da guerra finda ou o preço do café para fazer perguntas de quais árvores acreditava ele ficariam melhor no bostelo do alto da Adamaceno a ser visto da estação quando floridas alegrias dos passageiros dos trens: sem duvida paineiras altas rosas em outubro; quaresmeiras roxas em março; vermelhas eritrinas aquecedoras do inverno.
Toda semana Damastor cuida do cabelo basto, a brilhantina para manter a risca branca divisa ao meio no corte valentino, necessita banhos esmerados e constantes fricções. Perícia de Amandio. Amord’em’graça.
Se cobra, sejam bastantes uns poucos réis em paga. Gratífico Damastor retribui.
Também a Raphael, aprendiz de alfaiate é no corpo perfeito de ginasta contumaz que o corte e a costura têm seus erros perdoados no baixo preço cobrado, tão pobre nesta época balconista de charutaria Damastor encontrava neles única maneira de ser elegante de bolsos vazios. Hoje rico, Damastor reconhecido, paga pródigo os ternos de casimira importada fazenda e sobejamente dele receberia Amandio vivesse e em suas peritas mãos os cabelos tivessem o trato merecido, brancos no entanto bastos ainda.
Passado o tempo não esquece a Raphael a rigidez de Damiano; permitisse o padre ao doce irmão uns passes, Olga de poderosas mãos, e o vexame de seus encostos não o levariam à morte.
Em Damiano o tormento agora:
Os ossos de minha mãe, reservo uma gaveta na torre da Matriz e, o mais alto jazigo ao lado dela reservo à espera de Amandio amados ossos, quem sabe Damastor influente também nas eminentes esferas da Igreja o perdão à insensatez do golpe infeliz obtenha. Perdoado por Deus levado aos céus, indultado pela Igreja irá jazer na terra plantando palmeiras esguias e frondosas árvores o quanto permitam os anjos sonhar uma alma menina.
Sai à procura de Damastor. Hoje na Cidade, deve estar na alfaiataria.
A título de esclarecimento, escreve Benedito Rui em suas memórias escritas sem fito de publicação, raro voltar Damastor à Cidade. Investidor, desde comprar algodão e café nas terras da redondeza e, na fazenda em Borboleta cultivar a cana para cachaça e açúcar, até financiar filmes nacionais na Capital, viaja constante no corredor Cidade Capital. Damastor jamais quiscréditos não fossem os das contas bancárias; portanto nos filmes não figura seu nome como produtor por avesso a qualquer filme nacional, no que partilho com ele escreve entre o chilreio do lápis a deslizar no papel e o zombazombar de seu riso o Benedito Rui. Outrossim,que fal Damastor abomina filmes falados; compartilho eu novamente extensivo a qualquer sonoridade que atrapalhe as imagens em movimentos que falam por si.
Então, os pensamentos presos em Amandio foi Damiano à procura de Damastor em dois diferentes tempos calendários: uma vez há pouco, sem registro nos originais de Benedito Rui, quando a Catedral já saindo da prancha do arquiteto e, rica de financiamentos, derrubada a original azul os alicerces prometiam gigante abarrotar a praça de cimento e vidros coloridos de mártires sanguessantos, livre das árvores e canteiros de flores. Nas torres imensas projeto de abrigos do sono eterno da população. Foi pedir que o cerealista, os cabelos cendrados, instasse com o Arcebispo revogar proibição de jazigo para Amandio na matriz.
Os registros originais de Benedito Rui em pormenores contam: há muitos anos quando ainda de Damastor negros os bastos cabelos e jovem aprendiz de magnata; quando ainda de Raphael aprendiz na alfaiataria da confecção de ternos faziam-se derradeiros os remendos, quando ainda de Damiano tão somente padre as ambições de Cônego não almejavam ser Monsenhor, mas frente aos fatos susto da morte vivia estupor e insistentes lágrimas, já cogitava Damiano compensar para Amandio a Igreja não ter aceito o féretro nem a bêncao do caixão sequer o dobrar funéreo dos sinos: engendraria com tudo a seu alcance fosse ele enterrado em solo sagrado seio da Catedral. Demolidas sejam as cruéis portas barradas ao corpo casto e imperfectivo de meu doce irmão! Segredo apenas em sonhos e preces revelados, não mais suporta seja a Catedral pequeno azul na praça enorme. Seja ampla o quanto comporte o largo ser ela senhora sem fronteiras, seja alta o tanto rasgar o cimento às nuvens possa, eis minha reverência ao eterno. Jazigo para Amandio, eis meu projeto para o eterno.
E na alfaiataria encontra sem camisa, perfeito manequim na camiseta branca bíceps à mostra e parte do peito pela cava regata, o sorridente Damastor com régua torta na virilha e, a seus pés, empunhada fita métrica Raphael, alegre com moderação, das coxas mede o diâmetro e na barra o comprimento das calças.
Rapahel, a boca cheia de alfinetes a rolar nos lábios, dirige a Damiano o cumprimento que antes votava a Amandio: Si vales, bene est; ego valeo. Assim mastigando latim e alfinetes copia Cícero, enquanto de soslaio contempla, majestoso, o semblante contraído do padre, tanto a saudação machuca lembranças do irmão. Por remorso! pensa marcado brio Raphael.
Que dor! mortifica-se Damiano; e adia o pedido que faria a Damastor, pois teme o alfaiate confirmasse espírita os maus pensamentos que tem sobre mim, se agora falo nos ossos de Amandio e quanto almejo repousem eles em campa santa.
Caluda.
Amandio esteve comigo esta noite, e descarnado sofre na outra dimensão a injustiça dos homens não darem aos dele restos carnais sepultura à altura de sua bondade; Raphael alfinetando a barra.
Sonhou com meu irmão?
Eu não disse ser sonho a diáfana luz a preencher minha insônia! Amandio ali na minha frente, pincel e navalha nas mãos, navalha em sangue tinta e o pincel vermelha espuma de ensaboar, mas o sorriso sem tirar nem pôr o sorriso dele.
Benedito Rui escreve para as cinzas, alimenta de memórias o passado como futuro alimento para o fogo: desesperva-se Raphael de ser pianista ou de trilhar com música o caminho de filmes, plasma de luz a cada instante espíritos desfeitos sonhos.
Esplendor de filme, Macho&Fêmea se Deus os criou, é no título que buscara Raphael o enredo musical a compor. Victrolas emprestadas, uma de Damastor outra do Alfaiate, entende ser Wagner imperial ao lado de Stravinsky, pois no alvorecer da alma são os sons calcados em acordes desarmônicos recordos, fatias de espíritos faltos de luz, sujeita aos arroubos da natureza a matéria primeira do homem percorre, entre bestas feras aos percalços, a trilha da perfeição, e alcançada embora, a vida tornará a oferecer ocasiões de abrutamento. E de sublimidades: Gounot e sua Ave-Maria.
Esplendor de filme. Fiasco musical. Dia seguinte faz Raphael na barbearia o ponto de encontro para consolo entre amigos; os cabelos de Damastor nas mãos de Amandio cheias de espuma. As palmas abertas seguram na fronte o peso do fracasso. O público, que mudo queria ao filme assistir em silêncio, explodira em vaias e gargalhadas, assuadas ecoam ressoantes ainda hoje na buzina dos carros apitos de sorveteiro assobios esparsos realejos da esquina debandar da molecada. No relembrar dos fatos remoem-se misturados o eclodir das vaias com acordes de Wagner a fustigar walquirias quando na tela brilhava a Atriz em serena paz a receber perfumado chuveiro no corpo vislumbrado. Ou, era rugoso o mar quando plácido cantava uma pastoral o piano sob tremidas mãos, ou o mordomo matava a fera enquanto um archanjocaruso entoava Aves a Maria. Se poderia ter acertado na escolha das músicas, errara Raphael no tempo de execução; e na dessintonia o desafino.
Não o consola Damastor, quanto grato seja de seus préstimos de alfaiate é sincero amigo no admoestar; assim reclama de haver emprestado a victrola e os discos; soubesse para qual fim, eu jamais o faria. A sinfonia de luz maravilha sem necessidade de adornos. Gosto de viajar nas emoções ricas de imagens despidas das conseqüências repelentes do dia-a-dia: escreve Benedito Rui, fazendo das suas as palavras de Damastor.
Contornos escuros gestos ágeis na tela branca os espíritos em evanescentes aparições, fui roubado de meu prazer de contemplar, espectador assombrado, os olhos expressivos parece querendo falar.
Apenas Amandio gostou, recorda-se Benedito Rui mordendo a ponta do lápis conforme decidisse dentre as inverdades as melhores mentiras. Gostei da música e de vê-lo prestíssimo Raphael, esforçando entre o piano dedilhado a custo e o regador imitação de chuva, nas cascas de cocos secas cavalos a trote ou passos de homens em soalho de madeira. Mas do filme Amandio pouco entendeu: de sabor romântico, às idas e vindas do amor em melodrama prefere as correrias engraçadas da polícia contra vagabundos espertos. Teria mais sucesso Raphael se numa fita assim comédia, e não complicado drama, deixar correrem os dedos no passo apressado de melodias singelas, feito dança de salão.
Amandio consola-o: e Olga, a gentil namorada, o que falou? a tesoura, uma no cabelo duas no ar.
Olga disse-me que sim num tom vago.
A propósito de Olga, disse Damastor, hoje a encontrarei para um passe que preciso tanto carregado estou; e suas mãos fazem-me bem.
Não o saiba Damiano, perigo de excomunhão, católico soltar-se em mediúnicas mãos. Pensa Amandio a experimentar o fio da navalha.
Mas o episódio esgotou-se com a vida de Amandio; o enterro dias depois do acontecido, mudos sinos silentes lágrimas; esquecido Raphael aproveitou para vender o piano e alugar um salão onde a máquina de costura era a música contraponto ao assobio solo.
Damastor, e mais freqüentes eram os passes, abençoadas mãos, também a Olga grato. Foi padrinho do casamento, Raphael Olga e seus amores, cerimônia simples na igreja simples da Aparecida da Boa Vista.
Damiano não foi alegado luto, escandalizado porém aceitasse a igreja abençoar espíritas e negar-se planger os sinos no enterro de Amandio, o caixão fechado na escadaria da Matriz, vedada porta, direto para a Saudade, avenida para além do Canela, rio do esquecimento.


Arquivo 011 de Conto Romances
Paulino Tarraf

Versão de 27/02/2005

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