022 Tirando Fita

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Tirando Fita

Voar. Sobre pneumáticos, correr no ar.
Um céu tão lindo, assim colorido o fundo prússico nele desemparceiradas nuvens desarredam em bandos desiguais conforme o carro sem capota veloz de cinqüenta pontos aproxima-se do horizonte mais longe sempre. As árvores tragadas umas pelas outras na rabeira em ondas o poeirão, vacas e pasto giram, e gira o roceiro no cavalo mal-cumprimenta já-some num sorvedouro, Amandio assustado magica o que seria a vertigem de voar tal a tonteira de numa estrada correr, promete ser última a primeira vez, sofrido gozo. Na cabeça um capucho de couro qual motociclista os óculos de grandes vidros recobrem os olhos azul de infinito, por não terem cor nenhuma carecerem de escudo contra a inclemência de tanta luz; a pele de branco leite também desprovida dos benefícios da cor contra os dardejos dos céus no unto de cremes ganha proteção; sobretudo de brim ao lado de Damastor conductor do fiat velux, às rédeas soltas os quarenta cavalos do potente motor, importado d´Italia pelo Filho do Prefeito da Capital a mim revendido em ótimo estado, diz ele sorrindo para os negócios que lhe sorriem ser veloz o caminho para a Fortuna, Damastor de-ficar rico mais perto cada vez.
Comprar nas fazendas algodão e café, armazenar e na revenda para o porto de Santos remetido redobrar o capital, eis um homem amante do progresso pelo progresso amado; mas hoje não comprará dos frutos da terra, se não que presto vai rever a pequena Vina. E, diriam as mentes de maldade infinda, negociará a compra da Menina:
Na fazenda Borboleta. Vizinhas dela, as maiores, Borá e Campo perdidos de vista os horizontes verdes de café e branco algodão; cana de açúcar para consumo de rapadura e alambique.
Borboleta, nela o pouso de Damastor, onde Vina demora nos braços carinhosos de Abadiah, mulher de Alberto Andaluz.
Os pais de Vina, colonos meeiros, tão pobres quanto mirradas aves da ciscada onde come afoito o fornido garnizé; tão magros quanto os pobres proventos recebidos na meação da lavoura, pesada na balança do dono a reclamar prejuízos, tão remendados quanto tristes as roupas atritadas nos anos de serviços e, é deles a menina tão linda quanto os cachos descem louros aos ombros, tão linda quanto matreiro seu olhar brilho ligeiro nas rosadas faces, tão linda nos delicados gestos respostas por rápido entendimento, nem tal riqueza é deles sendo filha pois, tomados de amores os senhores da fazenda Alberto e Abadiah, sem benção de maternidades, recolheram-na como se deles fosse leoninos a parte em ouro nesta meação.
Recebe-os Vina por padrinhos de batismo, pois natural imposição é o apego à menina desde o berço, acomodado no quarto deles; ama-de-leite por natural a própria mãe contratada vem, amamenta-a e pronto!, do casarão ladrilhado ao chão batido da choupana de sapé volta. Por ama-seca recebe Julieta natural apego, dela tanto gostar jurou jamais casar-se, do berço ao túmulo servi-la, enquanto vida eu tiver.
De bondosos corações Alberto e Abadiah Andaluz. Crentes católicos de fervor arrebatado, atestam os colonos:
Em volta da venda do Apolinário, distante da fazenda poucas léguas em charrete, cresce praça povoa-se arraial e de pau-a-pique um igrejó se alevanta em louvor de São Sebastião das Borboletas. Padre para missa e batizados uma vez por mês, pagam-no os Andaluz da Borboleta, devotos.
As terras da região regem-nas variados donos com poréns, venerando verdadeiro senhor das terras São Sebastião é, daqui a Jaboticabal no recanto dos lares qual seja tamanho do lugar oratório igreja capela de ocupar praça inteira coberta de telha sapé paredes em tijolo madeira o chão batido ou vermelhão de cimento cru faz-se dele orago por merecida piedade: vinte de janeiro é festa com missa fogos batismo e homilia.
Para esta festa veio Damastor, em seu fiatvelux, no banco ao lado Amandio veio, dolorido luto pela mãe. Tristes trâmites:
Houvesse contenção para tantas lágrimas, olhos por queimar peito por sufocar, negror na alma que queria finada quanto o corpo mortal, não reencontrasse a mãe num dos dias incontáveis da eternidade.
Visitar, montado na modernidade da carroceria metálica energia da gasolina conforto dos pneumáticos, as terras milenarmente produtivas, agora pela mão do homem domadas para, fábrica fosse, gerar naturezas em cálculos industriais. Homem prático este Damastor, pensa Amandio no que lhe resta de cabeça recheada de dores. Ter a pele branca desprotegida, albino quanto o irmão padre tem-na protegida: quis Deus fosse Damiano tão igual à mãe na cor da pele parda e ainda padre ter caminho aberto para os céus onde um dia a reencontrará, ela imenso amor retirada do meu convívio e eu pecador, nada me redime e corro o risco dela ficar separado na eternidade. Custou aceder ao convite de Damastor:
Barbeiro, o salão para ele nave de igreja sagrado dia-a-dia permanece fechado casulo, Amandio dentro imóvel, a pele branca eflorescentes feridas, envolto em lençol feito alva a descoberto o rosto e carapinha em fio de seda qual enrolados caracóis grossos lábios narinas amplas de asas chapadas Damiano, irmão e padre, grita irritado que volte à vida ser pecado entregar-se assim a um luto é não enxergar nos fatos os desígnios de Deus doutro modo insondáveis.
Amandio sonda. Por certo existem para além dos corpos almas, delas o corpo crisálida a romper-se rumo à vida de plena luz. Sonda Amandio, e na harmonia universal não encontra onde esta luz tornadaforma demorar possa. Joana dos Anjos, benzedeira, diz migrarem ao interior das fêmeas quando, nas carnações que delas emanam, fetos sementes e cristais, alojam-se em busca de renascidas à perfeição alcançar. Assim, num grão de areia na rocha incrustado, na libélula efêmera de vôo fugaz incerto pousar, no desmesurado animal no ínfimo limo, viceja o futuro. Raphael seu filho, letrado nos evangelhos segundo espíritas, professa apenas nos Humanos criaturas Dei-símiles modeladas, buscarem as almas cada vez mais luz no sofrimento suportado. Assim, do rei ao mendigo vivemos nas provações o resgate da ofensa pregressa a nós, caridade expressão soberana do amor, redime. Damiano, irmão versado nos dogmas da Igreja, a tudo anatematiza como crendice por Satan engendrada para confundir-nos: temos numa vida, não mais, o tempo para ganhar o Paraíso e, sem a Graça Divina, espera-nos o abismo do pecado onde anjo-polutos, qual Lúcifer, nele caímos eterno inferno.
Ao apelo de Damastor descansa a afiada navalha de seus pensamentos a repassar-lhe feridas; no perder de vista das estradas descansado teme o sol rachar-lhe a pele qual puera ensanguessida. Óculos de vidros esfumaçados, e no horizonte desponta a fazenda definição de seu destino.
No terreiro come, às vezes insetos por sorte gordas minhocas, o garnizé afoito por machear as fêmeas de galos desprevenidos.
Abadiah. Com a mão afasta do rosto o suor, escorre a palma pelo moreno do pescoço debaixo da blusa desliza lentos contornos dizendo Uahllah que calor.
Quase viúva.
Abadiah Batisse Násrida Andaluz, dentes grandes lábio joliz riso solto, olhos orbitam desinquietos redondos, pele negra do sol filha do deserto, só o travesseiro testemunha molhado de lágrimas a saudade sufocada do oriente, figos suculentos uvas graúdas premidas na boca doce vinho mel de verão e, no árido das encostas o brancos das ovelhas, aqui na imensidade o algodão extravasa macio o capulho coriáceo, campo de neve fosse.
Entre Abadiah e Alberto houve um grande amor: o amor dele por ela. Amor no leito enfermo junto com Alberto morrendo, hoje. Amor em gentil retribuir, resvalo da gratidão, Abadiah de generosos sentimentos.
Por respeito virgem.
Se Alberto foi bonito, e foi!, quando se casaram ainda lembrava a beleza antiga no rosto orgulhoso de não ter rugas nem tanto o pescoço com flácidas carquilhas e mágoas do sol, os membros com poucas das vigorosas carnes não diziam do homem capaz de ganhar na queda-de-braço dos melhores na venda do Apolinário, capaz de domar cavalos bravios e capaz de vencer na corrida, a pé, quem mal-intencionado viesse desafiá-lo; do lugar ou de lugares fora.
Casaram-se; e eram outras também as fraquezas, nada que beijos e calores entre os lençóis não proporcionassem a Abadiah alegrias de viver; as lágrimas no travesseiro corriam movidas pelas saudades da terra distante. Turca diziam os colonos, a solto riso serem os turcos inimigos do seu querido povo sírio corrigia ela. Alem de que católica maronita. Uahllah.
Chega Damastor. Uahllah, quem chegou! Como sempre, portador de novidades além dos bons negócios regateados de praxe. Na varanda, entre sucos principiam regateios os abastados da fazenda vizinhos, Vina no colo de Damastor a brincar.
O sol acena vermelhos horizontes, mais clemente, e Amandio sob a parreira de uva admira as lagartas em pupas revirarem-se, os casulos pensos, parecem ter boca, feitos na manjedoura um infante-jesus. Poderiam contar-me das dimensões onde há mistério por sondar-se. Sombreiro e camisolão branco compõem desasado anjo em Amandio, os passos lentos as mãos ao longo descaídas. Sob o olhar de Joana Benzedeira a vaticinar ruína. Que não é da conta de ninguém; a arruda murcha na medida dos passos arrastados na paixão, lentos como cortejo de procissão.
Palheta na cabeça andanças pelo arruamento dos pés de café Damastor, mais os donos juntos os capatazes desabados chapelões, entre o verde das folhas o vermelho dos frutos promessa de rica safra; os colonos no sol a sol cuidam de não haver lagartas no capulho do algodão as máquinas nas costas aspergem veneno, o chapéu de palha desgastada.
Bons negócios, festejam todos contentes; Damastor silencioso vencedor.
Quermesse à noite, ao redor da venda do Apolinário em benefício dos fundos para levantar igreja de São Sebastião das Borboletas, a imagem doada pelos moradores em andor enfeitado risca de vermelho o azul do céu.
Divertem-se, o correio elegante para os letrados, quem analfabeto faz de Julieta escritora e leitora, compensação de que ninguém se lembra dela como alguém com peito batendo à espera de um amor. Vina pela mão, escreve, entrega, traz respostas e lê.
Damastor trouxe novidades:
Ligações no acumulador do Fiat, o projetor a postos aguarda o povo a magia dos tempos modernos. Cinematographia.
Fiat lux. Damastor gira a manivela. Na parede o lençol estendido, branco molhado feito tela, e nele deitam-se os claro-escuros das gentes movimentando-se rápidas graças à electrochimica emprestada do carro: um prolongado espanto derrama-se uníssono da boquiaberta assistência.
Mais alto, regalado e rasgado nas beiras é a voz de Abadiah, grita Shaitan e em cruz invoca o nome de Sahib, senta-se de novo e amplamente abertos os olhos engolem o jovem em branco e preto na tela cheio de vida jogando água de uma mangueira de borracha e todos se protegem de não se molhar. Quando tem letreiro é Julieta, a voz carregada de trovões do drama, quem faz leitura.
Refeito o susto, de novo o escuro, pelo lampião desfeito. Damastor desliga e outro rolo retira da lata; curiosos pegam na fita, estarrecidos que tão pequenos e fixos os homens pudessem ganhar vida, os quadros entre si parecidos.
Pedem mais da mesma mágica. Damastor bondoso muda a fita. Sem cansaço passariam a noite não fosse a lâmpada muito quente necessitar a pausa que se recusavam dar.
Na pausa, Damastor ao lado de Abadiah: corada do riso das novidades, das novidades Damastor sempre pleno.
O riso do povo quem agora atrai é Vina. Imita os apressados gestos há pouco vistos. Tal graça de corpo, sem som é perfeita coreografia.
Todos pedem para Vina, muda e linda, tirar fita dos conhecidos; e ela, graciosa imita-os arrancando risos derramados em lágrimas:
A luz do Fiat sobre ela incide e primeiro imita o Senhor Apolinário recusando-se servir bebida ao Parício; agora ao Parício de passos bêbados e língua mole empresta o corpo e atrai mais risos. Tirar uma fita. Desta feita copia Damastor andar com gigantes passos e palheta a girar das mãos à cabeça: às lágrimas risadas Damastor revê-se na Menina Querida; então imita Abadiah, a mão na cintura desce aos quadris a boca alarga-se como quem satisfeita da vida revira os olhos em direção a Damastor em disfarce até então imperceptível. Sem som, com muita vida, divina Malvina.
Cada um pede que ela, estrela da noite em festa, tire dele uma fita: então ela se recusa! senta-se entendendo Damastor ordens para reiniciar a projeção.
Refiatlux.
Na tela as iluminuras:
Como narrativa épica de perfeita reconstrução histórica um Rei uma Rainha um Malfeitor; a rainha déspota enraivecida grita sem som; e o letreiro intercala scenas:
Prendam-no.
Metam-no a ferros.
Julieta lê para a platéia:
A pão e água; metam-no a ferros!!!
E Vina repete, lábios silentes de compassados movimentos:
Put him in jail, until he dies.
Olhos presos na vida intensa a brotar na tela multiplicadas emoções choram comovidas as pessoas, insistindo cesse o drama volte a comédia.
Damastor, atrás da presa assistência, a mão gira a manivela atento no foco do projetor, a seu lado Abadiah. Com jeito, mão na mão na manivela, logo ela aprende e sente o poder da luz que dela emana, a vida que se agita a um simples toque de seus dedos.
Viúva e virgem.
Amandio, os olhos voltados para Damastor, muito perto de Abadiah a sussurrar em seus ouvidos:
Ama-me.

Sussurros de volta:
Casei-me por amor, não importa seja ele velho.
Á beira da morte, ainda assim farei dele um homem honrado.

Insiste Damastor, negócios do coração:
O futuro a Deus pertence. Ama-me agora.

Enlevada, a custo se nega:
Sou mulher intacta.
Intacta permanecerei, por direita em meu caráter.

E Damastor, a voz num fio de sons, mais alto ressoa no peito o pulsar contido:
Um dia volto nas tantas voltas da vida, caso-me com você de branco, Vina será dama de companhia, por amor para sempre nossa filha.

Chora Amandio; única testemunha das scenas mudas desta fita de amor ao vivo. Nunca vira tão próximos um homem e uma mulher. Nunca soubera da força varonil, presente no gigante Damastor entrevista nos convulsos meneios de corpo de Abadiah colada em Damastor. Os olhos entopem-se na torrente de novidades. Sobram-lhe nos ouvidos os gritos do projetor a girar os estrondos da respiração a ralentar. E a certeza intima de que, por jamais ter sido além de pupa, jamais terá vida fora do casulo. Amandio decide-se; somente não sabe a data.
O carro, o girar da manivela.
Haverá outros janeiros.
Vina acena para Abadiah do colo de Julieta. A mãe na soleira da porta soube que a filha, levada por Damastor para novos horizontes, iria embora lhe disseram agora. Consentimento de Abadiah.
Amandio indiferente, a cara exposta ao sol pronta para feridas, é comum que se não for a morte é a vida quem carrega para longe e rompe laços, pouco importa ligassem amores atassem desafetos.
O carro parte. O Fiat, sem cavalgar na força de seus quarenta cavalos, leva a Menina Malvina colados os olhos no cinema da janela em que o mundo corre passado em troca do aceno de novidades.
Abadiah entra no quarto de Alberto. Corado anda sem dificuldade. Valem os ditames de Deus.
Uahllah!


Arquivo 022 de Conto Romances
Paulino Tarraf

Data *23*03*007




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