01 Raphael, Olga, seus amores



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Raphael, Olga, seus amores

Raphael, Olga e seus amores cinco descerem pela calçada, eles ternos de esmerado corte tecido de refinado têxtil, ela o esvoaçante vestido na graça do vento, somente em dia muito especial.
Hoje deserta rua, cães vadios amolador de facas vendedor de vassouras raros aqui ali um transeunte, habitual segunda-feira, dia corrido nas rotinas s’esvazia.
Pela calçada a falta de pressa do vendeiro de alface passa, para a rua abre-se a porta verde da alfaiataria, dentro roda a sempre cadenciada vida. Alfaiate na alfaiataria silencioso chuleia e cirze solitário Raphael. Alfaiate sim, mas alfaiataria é nome comprido demais para a estreita fachada e pequeno cômodo de porta entrada única. O Capriccio Italiano na electrola gira, é uma Victor!, sons de doces harmonias, incansáveis pedais o ruidoso rolimãs feito matracas faz cantar a machina de costura, é uma Singer! Ao fundo dois degraus, empós outra porta leva ao umbral da casa. Além, o breu.
Rapahel, afinados ouvidos, no meio da bulha distingue chamado em silvo agudo vindo do fundo:
Sim, Olga!, responde ele ao silvo, a língua no céu da boca alonga a sílaba inicial em Olga.
Alfaiataria, da casa enorme Raphael ficara com a sobra, concessão no corredor de passagem da rua abriga o necessário ao ofício. Prateleira das variadas casimiras da parede pende, guarda-roupa reformado é armário com gavetas para utensílios, antiga mesa é balcão para corte do pano, o cômodo embora estreito acomoda-se a tudo além de, um manequim de provas em alpaca envolto feito saio, face de esbatido rosa os olhos vesgos num ponto fixo; uma victrola não mais de manivela moderna electrola disputa a primazia com a macchina de costura moderna de pedal com rolamento e roldana, não mais manual; a macchina enquanto feroz a sua agulha cose canta canto rival da victrola a girar um disco sonoro ao suave toque da agulha. Movimentos em cadência de Raphael. Algumas cadeiras, para a prosa de visitas, acomodam os mesmos de sempre que à tarde virão. No estreito corredor cabem todos, feito bondoso coração.
Raphael alfaiate, qual numa entretela metido por enruste, de pé atrás do balcão vinca a unha na fazenda preta gola e losango da lapela, risca de giz azul cavalo da calça e cós, recorta tesoura majestosa da manga o cavo; o manequim companheiro, olhos vesgos de jabuticaba verde ainda, vestidos paletós em alinhavos casimira ou linho, recolhe surdo os espaçados suspiros de Raphael em coro com o clarim do Capriccio. Raphael, nem tanto só quando companheiro pelas várias alfaiatarias tem-no seguido o manequim, seu desde antes da guerra englobar o mundo.
Alpaca linho e percal aguardam no balcão risco e corte.
Nem tudo entretelas, nem só o silêncio do chuleio ou o cantarolar esparso do vazio das horas. Seleção matinal meticulosa do fundo musical é o prazer de Raphael compor a ordem das melodias, entre quatro paredes abrir a trilha sonora no tempo e no mundo, várias pátrias variadas épocas: Capriccio italiano entre todos principal, Bolerô de Ravel é passagem, pour La Mer de Trenet vis-a-vis La Mer de Debussy, para a Doce França ao ritmo de La Valse, Ravel de novo convida à dança; modernas gaulesas castanholam sedutoras habaneras feito hespagnolas fossem orquestradas por Bizet; de Verdi triunfal Aida conduz Raphael a falsos orientes onde nascente o sol ilumina a Butterfly de Puccini senhor de sua sina desditosa por ele escrita; hóstias negras de rebrilhante vinil, acariciadas na casimira, aguardam em pilha a vez de rodar no prato giratório, oferenda solene entre os dedos de Raphael sacerdotal.
Giram, companheiros de Raphael. Roldanas e rolamentos no canglor do afã diário. Doçuras musicais.
Cantarola junto, se não assobia um tom abaixo, sempre no compasso, deformada melodia. O Capriccio Italiano, bisado durante o dia, faz parte da história de minha vida repisa sussurrado ao manequim imóvel, que vesgos olhos pousa no tempo desbotado embora, também ele parte repassada da vida. Tantos anos corridos na pressa da ampulheta juntaram amigos e pó.
Raphael feliz.
Agulhas e sons.
O pé no pedal.
De música em música, assim caminha o principal do dia, tesoura no corte ou agulha no cerzido, macio silêncio, só a música imperial.
Acionado o pedal a macchina primadonna introduz, cantora, profana cadência. Percalços para Raphael. A agulha guilhotina o som da agulha rival.
Sua alma, sua palma; diz Raphael, a língua palatal. Se em Olga delonga o ol, gosta de palavras qual alfinete alma espiritual álcool algodoal, nelas a consonantal alvéolo-dental alcança o céu da boca, dito cel bucal, pela língua demoradamente acariciado, como anotara Benedito Rui no rascunho de sua biografia.
Sua alma; e num gesto o dorso da mão direita escorrega a palma da esquerda. Sua palma, era o dorso da esquerda a escorregar a palma da direita. Explica: a alma transparece na palma da mão, o íntimo exposto ao mundo.
Alfaiataria, aqui reina Raphael. Entretela rua e casa. Casa dentro, Olga imperial. Larga em desmedido comprimento. Muitos cômodos. Verdejante quintal.
Luminoso divisor alfaiataria barra, com seus móveis manequins panos victrola e combinados sons, pedal de costura canto solo coral metais quatro cordas piano trio de câmara tutti sinfônico orquestral, a sala em breu.
Isola, nem tanto.
Vizinhos tudo sabem. Se não sabem, sabem a modo vizinho do visível para além das conhecidas dimensões, a oressa que dos corpos sopra e, traz da alma à palma, não só ahúra-masda também coscorão das vidas passadas. E a alma acaba por revelar-se na palma quanto maior seja a barragem entre estas dimensões.
Mais velados os sentidos, mais se aplicam vizinhos no transe das intuições.
Pespontam entremeios nos enredos. Ao cotidiano costuram numa trama épica, revestidos banal e eventual de esplendor, corrigidos no ajuste do cós à amplidão do olhar. Um viso vislumbre indistinto sinal um leve murmúrio fortuito rumor, apuram audição de felinos noturnos aguçam de lince o penetrante sondar e pronto, faz-se platéia permanente do mundo, assíduos, argutos, persistentes. Ocultos nas brechas do lar. Transeuntes eventuais. Vizinhos janelas do saber.
Raro Olga dar-se à vista; quando vista não parece sofrida no algoz de mulher brilhar, na força do escovão palha de aço querosene e cera, o piso; assim como servir almoço e janta.
Mercadinho, venda, farmácia, açougue e padaria jamais receberam de Olga a presença. Fogão, vassoura, tanque, pia, sabão, não macularam a graça de suas mãos.
Ao silvo de Olga:
Sim; molemodula Raphael para o breu voltado.
A voz soprano alteia demorado el: Raphael!
E Olga dá-se à vista. Surge aparição na lâmina aberta sobre o degrau da porta repentino corpo, luminal no breu, um braço acima da cabeça apóia do indicador a unha postiça e vermelha no verde batente, a axila expõe-se azulina sob ombros desnudos pelo decote e outro braço em alça espalma a mão nos quadris envoltos na saia ramada de cintura baixa e pregas largas.
Cabelos curtos presos rentes, ramonas grandes feito pentes e pretas:
: Raphael!, queixo elevado pescoço sem dobras, a quente voz chama.
No rosto untuoso do creme facial as sobrancelhas arcam marrons em risca de lápis:
: Raphael!, cera egípcia no buço, a sussurrada voz.
Repentina Olga, e linda.
: Raphael!, repentino desaparecida chama.
Desaparece para além da alfaiataria, além da sala escura; estética e plástica, brilha Olga entre cristais.
Um dos aposentos, acomodou-o em espelho: paredes e teto, um forro de reflexos. Olga multiplicadamente ali.
A ginástica inicia no espreguiçar-se gracioso alongamento de braços pernas pescoço, cauteloso virar-se inteira para não criar pregas, minucioso trato boca testa pálpebras. O sorriso leve aos lábios não vinca aos olhos sequer ou sulca a testa. Corpo cuidado no dia-a-dia.
Cintura firmes carnes dosadas medidas: umbigo redondil, as coxas, meu orgulho, diria o poeta colunas matemática perfeita do escultor para divinal estátua sustentar.
Glicerina para o coscoro no calcanhar, liso e sedoso ao tato e olhar, umectantes de base uva e as unhas fortificadas em iodo e limão, o esmalte a pincel toque de pintor. Meus pés, meu mimo: graciosos e fortes para os saltos enormemente altos, sapatos abertos em despudor.
O banho imersão em leite de cabra tépido, tonificante lassidão para o suado esforço de estirar, contrair, relaxar. Bórica em algodão embebe o descanso das pálpebras.
Linda!, confirma no espelho o escravo olhar.
Então o café matinal:
Raphael!
Apenas por ele sensível ouvido:
Sim! Moduladamentemole.
É hora!
Raphael silva e da rua o Rapaz da Marmita e Recados corre sentar-se, guardião da alfaiataria, frente ao manequim. Proibido de entrar na casa, se entra não passa do escurobreu.
E nos pomposos acordes iniciais, de Strauss ou von Suppé, Raphael galga os dois degraus para a sala oculta em trevas. Cheiro de café e torrada; e nos acordes finais volta o Rapaz para as bolinhas de vidro, Raphael a sentar-se aciona o pedal e a macchina da capo canta. Brilho da casimira em outra gravação, repouso de Olga.
Um sono leve prepara-a para o almoço de carne magra, folhas verdes e coalhada no meio do dia. O pepino reserva-se para creme facial, fórmula psicografada por meus guias espirituais nem o farmacêutico decifra pois vende, dos componentes básicos, alguns.
: Raphael!
Meio-dia de plena-luz:
Sim; melomodula Raphael.
A agulha espetada e descalço o dedal, descruza as pernas devagar enquanto repousa a casimira na macchina calada e sobre ela os óculos. Dois degraus acima sobe e some no breu. Volta logo e silva. O silvo agudo arranca da molecada da rua o Rapaz da Marmita e Recado, que correndo vem e recebe ordens enérgicas. Obediente sai. Busca na casa da esquina do quarteirão de baixo a Marmita.
De volta posta-se Guardião da Alfaiataria, olhos nos olhos do manequim, vesgo semblante plácido sorriso alegre e colorido, paletó alinhavo branco sem mangas. Raphael espeta a agulha, descalça o dedal, descruza as pernas, repousa o óculos, galga os degraus e some no breu da sala escura. Cheiro de bife e alouradas cebolas.
Silêncio. O vesgo do manequim nos olhos sonolentos do Rapaz.
Olhos do Rapaz nos vesgos do manequim, Silêncio musical, almoça Raphael na solidão de alfaiate, entreaberta a porta para o breu.
Retorna Raphael.
E o pedal, sonora macchina e agulhas sonora victrola.
Bela tarde. Acordeom ou bandoneon, depende de Olga saudosa, cantam estribilhistas Acuña-DelCarrill a Meia Luz canta La Môme o Amor. Mudo escuta Raphael.
A depilação é meticulosa. Não sobram pêlos na sobrancelha. No rosto o lápis arca um marrão maior. As axilas, melhor expostas por não terem dobra nenhuma, azuis.
Aos cabelos cuidado menor. Às perucas, paixão de Olga, maior. E num quarto acomodaram-se prateleiras, mostruários de calvas em porcelana as justapostas cabeleiras de variadas cores e tamanhos a receberem escova e trato como animais de estimação.
Três horas!
Silvo.
Rapaz larga o balança-caixão com a molecada e, olhos nos olhos do manequim vesgo, guarda a alfaiataria vazia, o café perfuma.
Verdi ou Puccini. Traviata ou Bohème. Wagner, eventual, só aos sábados, matinal.
Hoje Rossini, e o fortunadíssimo Barbeiro da alfaiataria uma alegre Sevilha faz. Raphael feliz.
Pérolas, prata, ouro, esmeraldas, brilhantes, rubi: colares, brincos, pulseiras e broches são todos jóias verdadeiras que dentro do espelho Olga combina-os entre si, nua ou vestida com a recente remessa de modistas da Capital.
Crocodilo, antílope, camurça, leopardo, vitela, porco, vicunha, marta e zibelina: cintos, bolsas, sapatos, casacos e estolas. Cômodos no quarto do couro.
Tarde da tarde. Olga apronta-se bela para a noite.
Seis!
Gounot destempera o cravo de Bach.
E, nos rádios vizinhos em uníssono coral, Gabriel Aracangelus saúda Maria.
Até amanhã, seu Raphael.
Se Deus quiser, meu Rapaz. Seja pontual.
O Rapaz desaparece na esquina, de rádio em rádio Ave Maria, som parado no ar.
Raphael cantarola em falsete com o tenor.
O Anjo do Senhor anunciou a Maria, prega em voz solene o locutor.
Allankardecista e como tal espiritualista cordial e caridoso, tem suas ressalvas para com a oração e adoração. Somente a ação acalma a dor, restringe Raphael. Atrás da macchina uma estampa adorna a parede. Robusta mão arranca a dor da palavra Adoração, em minúscula dourada. Abaixo um dístico encarnado: A dor será tirada pela ação. Raphael discorreria horas sobre isso. Mas impossível ficar insensível à audição da saudação do tenor Gabriel mesmo com o cravo soando harpa.
Sou incorrigível romântico, ressalta Raphael.
Entretanto a entreteia.
Eles começam a chegar, os Três. Despontam na esquina. De gravata e paletó, de colete xadrez apenas um. Às vezes juntos, quiçá separados; dois primeiro e o outro após. Passo lento na fresca da tarde engolida pelo olhar entretido dos vizinhos. Nunca faltam, os Vizinhos. Nem os Três.
Uma lâmina da porta fechada.
Entram um a um, ou juntos os Três, sentam-se magros ao redor do manequim. Um deles mulato claro. Outro pálido magro. O mais novo, a pele creme, o colete xadrez a camisa de meia e três botões, o bigode tinto avermelha a boca.
Radialistas, jornalistas, convictos allankardecistas conversam muito, do jornal ao espiritual.
Surgem os Vizinhos, sorrateiros. Vultos moderam o andamento quando fronteiros à porta. Os olhos de viés, no vão aberto verde têm por entretenga adivinhar o passado além.
Vêem o manequim desnudo e Raphael, dedal no indicador, alfinetar alfaiate o paletó no mais robusto, de bigode tinto cabelos de negro pó retirado o colete.
Ouvem Raphael espiritualista alinhavar metafísica enquanto faz alterações na pala, vestido o manequim; um terceiro some pela escada escuro adentro. Para um passe:
Crêem; olhos malícias, ouvidos sátiros, língua mordaz; variações em tom menor para um tema singular.
Uma valsa vai, uma sôfrega polka inda, e some com os outros dois a escada para as luzes; concerto ligeiro a várias mãos, acordam ao final os Vizinhos. Palmas.
Geme o acordeon une chanson française, qualquer chose de rendez-nous nesta noite mon amour.
Raphael dobra os panos, encapa os discos, fecha a macchina, guarda a tesoura, agulhas, linhas, giz, alfinetes e dedal.
Permanece mais um pouco, até o escuro aprumar ortóptico os olhos do manequim. E Raphael completa o verde da porta que falta.
Somem os vizinhos. A Hora do Brasil toma conta do ar. O escuro conta da cidade. Os cochichos dos seroens.
Fala-se em sessão espírita; os cinco de mãos dadas sobre a mesa branca Olga medeia do além mensagens de amor entre os homens.
Duo, terceto, quarteto, quinteto, Olga solista.
Falta para sexteto o Sexto que vem da capital. De quando em vez. A platéia aguarda o principal.
Descerem ela e os quatro pela calçada, fato raro de se ver.
Descerem ela e os cinco pela calçada, quem viu contou vantagem quem não viu jamais se perdoou.
Acontecer suntuoso com aura, início insidioso, ápice monumental. Daí pressurosos os Vizinhos rastearem as advertências do evento, quando!, e postados em esquinas disfarçandos intentos, engraxar portões arrimar cercas levantar muros pintar paredes, visitas delongadas prosas presos à porta, vagaroso deslocar-se de uma a outra casa.
Atentos a feriados, fins de semana prolongados, datas prováveis somam com outros sinais:
Um sinal é paramentar-se o manequim com terno de importada casimira. E, as medidas e ajustes toma-os Raphael em cada um dos Três, entre a Ave-maria e a Hora-do-brasil: para um é perfeito o colete, ao outro a calça veste bem no cós embora curtas pernas, e o paletó é no terceiro o caimento da cintura contudo os ombros caídos exigem perícia no corte e ajustes no enchimento; reservada a manga para o exato braço de Raphael, dentre eles o de extensão maior: é o Sexto agigantado de corretas proporções, distribuídas desiguais entre os Três e Raphael. Nenhum deles, nessas primícias, some na escada para o breu, antes dos outros.
Vizinhança atenta nota e novos sinais coleta: Folga do Rapaz é certeza da vinda próxima.
Raphael silva e comunica ao Rapaz não venha a partir de amanhã. O Rapaz cambalhota e as marmitas suspensas por três dias. Suspensos vizinhos desde então.
Chegam os despachos. Por via férrea caixotes de tamanho vário, diferentes dias, endereço certo. Alfaiataria. A cada entrega os Três radialistas não apenas chegam juntos, mais cedo chegam. Uma lâmina verde fechada, ajudam Raphael desencaixotar uma vitrola nova, acústica perfeita em caixas potentes, alta e fiel em disco vinil; raros alguns. As perucas sapatos saias e vestidos, supostos nos pacotes, Olga ao correr dos dias lento desembrulhará. Sempre surpreendida.
Folga do Rapaz, a marmita suspensa, no manequim a casimira inglesa, o despacho ferroviário: dois dias depois ele chegará. O Sexto. Cognominado Secs pelos Vizinhos.
Chega pela manhã. Discreto, só, direto da estação do trem de leito desde a capital, sem malas desce no ponto do Circular. E sobe o meio quarteirão da esquina à porta verde da alfaiataria, fechada. Tem chave.
Em dia normal Raphael silvaria altíssimo, tão longe se distraía o Rapaz da Marmita a brincar. Hoje dia especial, tão próximo se posta moleque, só não toma o lugar do manequim por ser a folga cabal, inadiável e irreversível: nunca brincou tão perto da alfaiataria.
Criança é distraída quanto brincar é distração. Desatentas a ponto de não darem alvíssaras da chegada. Quem o viu primeiro foi a Crocheteira, idosa de boa vista, que desde a folga do Rapaz da Marmita não mais deixara o portão.
Visto o Sexto, semi-abertas portas janelas amplo-vão, cresce no movimento lentas idas e bem lentas vindas da farmácia à padaria e o retorno à farmácia completa-se com o escolher uma a uma as verduras da quitanda, da quitanda para a venda o cheiro do pão fresco sem pressa a fila coleia a esquina da padaria, se o sol queima o meio dia as árvores derramam sombras nos grupos atentos e vizinhos visitam-se nos beirais de entrada em pé as longas despedidas, a tarde escorre nos sons da vassoura a rascar calçadas, do esmeril amolador de facas, pancadas desamassam tampas e panelas de lata, matraca vende biju, apito sorvete, mariamole flauta, mais intenso ao fim do dia em que foi visto o Sexto.
O Anjo do Senhor Anunciou a Maria no céu estreladiurna alva única no azul vapor entardecido de vermelho a saudação em feitio de oração cantada entre acordes e apertos no coração de abertos olhos para as lâminas da porta em vão.
Ave apenas de vogais sustenutas na gorja do arcanjo-tenor, as notas no ar musical e das gentes o olho na porta aberta em vê, atentos aguardam surja alguém, mas nem no Maria vem.
Gratia plena e surge emoldurada em verde: Olga.
A franja desce até o arco marrão da sobrancelha desmaiada em cinza para os cílios de pesado negror.
O lápis em dois riscos ousados rasga em lagos as pálpebras onde se banham dois globos azulentes-artificiais.
Brincos brilham adamantinos por entre os cabelos negros, impecável pajem acariciando os ombros nus. Brilhantes enroscam-se no pescoço e mantêm na ponta, insinuando afogar-se no seio, um rubi da cor da boca de entreaberto sorrir.
A saia, vaporosa roda de ramagens verdes termina em vermelhas rosas estampadas na blusa presa por tênue fila de esmeraldas em alça falsa, ajusta-se dos quadris para cima e amolda os peitos oferecidos.
Olga anda. Os pés, minúsculos desnudos flutuam soltos no ar ao som dos altos saltos de vidro. A saia balança e cobre balança e descobre maciços carnais, escuros veludos, profundo perfume confunde os cheiros que a tarde ousasse produzir.
Sozinha desce até a esquina. Olha ao léu, e volta, os vidros nos ladrilhos, desaparece no verde umbral.
Ninguém se move: haverá mais.
Agora eles, os cinco, saem.
De terno, corte impecável que o manequim vesgo e sorridente usou, alinhavado, à espera da prova para a magistral confecção. Ficam por ali. Sem pompa, distraídos quase. Um entra, outro sai. Calmos. Ou na esquina nada esperam. Como quem sem pressa espera, mas.
Os vizinhos entr'olham-se guardiões.
O arcanjo-cantor: Ave! Maria!
Em estacato clama tenor:
Maria! Maria!
Perfume.
Olga porta assoma.
Lentamente sai.
Raphael fecha lâmina a lâmina em chave a verde moldura.
Os quatro aprumam-se, fronteiros.
Sexto, gigante, derradeiro.
Ela primeiro. Destaca-se à frente.
Saltos de vidro saia rodada.
Esvoaça
lento cerimonial,
Noturnália de Divas
com outras estrelas Olga compõe.
No além da esquina, na dobra do tempo, Olga vai.
Dores atrozes.
Em arpejos diluídos
Acorde final
Amém.


Arquivo 01 de Conto Romances


Paulino Tarraf
Versão de 31/10/2007
25/03/2005
Ligeiramente modificada de 20/01/03
Versão de 180305 ligeiramente modificada
de 080704 ligeiramente modificada de 20/01/2003

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