010 Rui Raul
Conto Romances Arquivo 010
Rui Raul
Moro barato num quarto de pensão, mobília de aluguel. De meu guardo muda de roupa, paletó xadrez gravata brilhantina e bigode recente a tinta para a noite e saio, desacautelados rumos decidido tomo, para o escuro da noite onde rui o romântico no reverso do romance, no torto do muro no perigo da travessa, no inverso do luar a todos os gatunos vejo pardos.
Pouco mais de meu além da muda, tenho uma victrola para alguns 78 rotações. Mas ela, victrola, das rotações não gira além das 70, toca fanho gira girar e nem gato tenho nem porcelana nem tenho encontros ao quais mudo se assista em meio à difusa luz que se prestasse a clima de tango celebrar passado amor. Joguei fora, a victrola e tudo, menos as lembranças que tão mais agradáveis eram acontecidas mais doem agora amortecidas; os discos riscados guardei como do passado guardo o violino, há muito sem cordas e roto arco, só restaram por tentativa de convencer-me, se necessário for, ter a vida e os sonhos prometidos valor nenhum.
O mais de minha posse, desfalcado de quase todo abecedário pronto para narrativas, aos poucos fui deixando e hoje tenho apenas duplas interrogações seguidas de triplos exclamativos; tento deitá-los fora entre ruínas de muros escuros cantos dobradas suspeitas de esconder gatunos todos pardos ao luar.
Nada mais eu tenho, além de que me cansei dessa vida. Lugar comum, não a frase mas a vida, desinteirada do principal.
Nem todos os sonhos banidos, um bem guardado no peito prendo por premonitório: um punhal afiado trespassar-me, o cabo em mão armada na madrugada. Desde então quisera da quimera o realejo de um dia no último suspiro ver realizado sonho meu. Pertinaz o persigo. Ele foge de mim.
Brancos de dia e de dia os negros também, pardos nas sombras da noite iguais. Se os vejo na rua o sol em plena luz nada digo e desvio os olhos para vitrinas de roupa e eletropeças domésticas panelas apagado quebra-luz, ofertas do comércio que nunca aceitarei. Na pensão onde barato moro, barato moram alguns. Trato-os com polidez e até comento algumas idéias suas enquanto palitam nos dentes a carne que jantaram. Penso que, à noite gatunos todos eles, guardam para mim o punhal que se recusam cravar-me.
Solitário, à noite saio. Saio para a solidão maior do escuro. Mistérios. Las. Los.
Meu nome é Raul. Carrego de tintura meu bigode fino desenho preenchendo cantos e dobras,bigode torto por mais que fio por fio na tesoura ou pinça rabisco de lápis ou retoques de pincel eu horas ao espelho dedico-me a mim. O espelho lembra-me dela tão linda nele refletida; se perto de um espelho, seus olhos jamais se voltavam para mim. Meu bigode quero escuro; o cabelo agora embranquecido recebe o loiro da tintura que antes era oiro e puro. Brilhantino estrelas nas ondas raras que persistem, gelatina onde onda de mar prata congela-se convexa crista côncava queda; às vezes salpico negro pó. Meu espelho nem tudo mais reflete e minha cara sofre leproso papelão no vidro pardo onde o adamascado de mim deveria estar. Meus olhos, aqui eu vejo a cor que tiveram se posso esta catarata chamar de azul.
Cansei-me desta vida. Mas não foi de uma vez. O que rui no tempo desprega-se em tênue pó. Meu espelho, a prata negando seu reflexo em opaco papelão desprendeu-se poro a poro sob meu olhar, como a catarata garço a garço esgazeando o azul rútilo de minha visão. Mas antes da ruína plena tudo percebi e me cansei primeiro, vendo nos olhos de meus filhos que as promessas da vida não passaram de ofertas de fugaz ocasião. Os olhinhos tristes puxados em sorrisos de rugas forçando a abertura da rima que o desencanto teimava em fechar, tanto queriam ver e sorver de tamanha oferta enorme redibir. Defeitos. Desarranjos. Desapuros. Desarrimos. Desatinos. Desarmonia: que ânimo mantém vida e abertos olhos se a esperança não é senão um rictus plantado a pregos no amargo da boca lambida de desejos mas sufocada em fel.
Meus filhos não morreram mas eu parti.
Abandonados eles e minha mulher. Dirão: mas que canalha! Sim, existe gente como eu, prova viva do que eu dizia há pouco, e muito! Posso ver em olhos de estranhos rediviva desilusão, em olhos outros posso ver e suportar. Olho, confirmo e gosto. Sou ruim? nem pouco nem mui. Mas nos olhos de meus filhos, não neles!, a desilusão causada por mim não posso constatar.
Busco o real. Gosto de ver pardos reflexos na vitrina misturados a faqueiros aparelhos de jantar porcelanas de chá e café, muitos cristais. Não sou visto a ver o efêmero passar. A cara no fundo de um prato. Dentes enfileirados nos cabos da simetria das colheres. Batedeira no peito, simétrica ao coração. Do ferro elétrico o cordão é colar de voltagens sem fim. Aspirador um poeta de nariz solto no ar. Orelhas pares de pires. Olhar dentro do oco da xícara, vide o vazio. Dissimulato, à noite gatunos como de dia nas vitrines somos todos parvos.
Sem luar, afasto-me para perto do recanto malfalado da virada da tocaia do perder de vista morada de ninguém. Talvez, na solidão deserta de sua meia luz esconda-se quem irá por mal tirar-me a vida, inda que por meu bem.
Desconsolato volto mistério para o barato quarto de minha pensão. A vida teima em não me deixar. Não me canso de cansar, tento sem esmorecer a única coisa que na vida paga a pena: a hora de morrer. O mulato com canivete desdobrável apara as unhas dos pés, a cutícula não cessa dia a dia de crescer, carne morta acumulada ao redor da garra disfarçada em adorno. Dedos achatados as unhas brilham por entre o pardo pálido dos pés. O mulato ergue o olhar e pendem os lábios num cumprimento habitual. A manhã vai começar e uma malícia de esguelha no amendoado olhar. Desdobro rascante desprezo mais cortante o meu silêncio a seu sorriso afável que a dureza de suas unhas ou seu afiado canivete.
O dia passa solitário, passo eu junto ao dia no cavo desta solidão, dormindo eu e o dia frios em cobertores esgarçados, como a vida cansa.
Meu bigode no espelho demandatura de nova tinta. Amanhã? Saio. Pelas ruas ruindo o reboque os tijolos porosos em cruas carnes expostos e os cachorros, corroídos cupins, dos telhados por desabar vou indo sem saber, ali onde sem sombra de luz, eu Raul inverso luar, inverso do sal, inverso do sol.
Essa noite, quem sabe, aberto o peito na ponta de um punhal repousará meu coração.
Las. Los.
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Paulino Tarraf 06/03/2004
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