Arquivo 09Nona

Conto Romances Arquivo 09


Nona

Conheço minhas gravatas e o nó que num laço faço.
As mulheres, nenhum mistério para mim. Deploro que não haja algum.
Minhas gravatas, seda pura. A ponta um pouco abaixo do umbigo. O nó. Casulo de precisão. Algodão que fosse; não está na seda pura o segredo do nó: na ponta de meus dedos, ágil virar, torcer, ajeitar, e o triângulo encastela-se preciosa gema na gola entreabertos lábios ao fundo oculto botão.
As mulheres. Qualquer mistério. Haja um, e fico feliz.
Nem na lua, mistérios há. Houve tempos de se olhar para ela, lua de baça luz halo prata acolchoada em nuvens, e cismar; abraços namorados; místico sonhar. Chamaram-na Rainha da noite, ingênua reinou; Senhora das marés, nos mares mirou-se. Prata e solitária distante num céu de breu; fria e majestosa envolta em manto estelar. A lua, ébria de poesia, ignorou ser do sol o luzir de seu luar. Um dia, homens, passearemos nela nossos astronautas pés. Nem lunático posso ser.
Crédulas. Você e a lua, mulher.
Nem misteriosa ela, nem você.
Elisa. Atadas as mãos, mordaça, vejo-me em seus olhos de terror.
Desato o nó. E no colarinho dobrado, estreito sulco, alisa-se a seda em vai-e-vem e a quentura adivinhada acaricia-me o pescoço e gosto do perfume que se desloca no ar dos movimentos meus.
Mulher, mistério nenhum.
Em lugar algum. Alhures o comum.
Elisa, a mordaça, acaricia o silêncio o profundo de minha voz.
Aguarda-nos Beethoven, núncio dos Elísios, morada do mistério.
Ligo a victorola. O braço pousa mecânico, a agulha desce no sulco certo. 78 voltas por minuto jorram a sinfonia coral do Beethoven morto há século e tanto e se a esse surdo ouvimos agora é a eletricidade sem mistérios quem nos traz o som. Distorcido, embora. Quem garante ter sido assim outrora concebida quanto agora executada. A qual cantor barítono ou tenor devota você sua atenção e a qual soprano devoto eu e não ouvimos no mesmo tono, principalmente você inundada de tal Pavor.
Ré menor.
Ódio maior.
À Alegria.
Elisa. Se mistério inda algum persiste desvendo agora. Para Elisa. Mistério continuará para mim.
Você crédula mas não eu.
Gira Beethoven tuttipotente orquestral.
A massa sonora freia seu frenesi. Címbalos tímpanos e tambor abrem parêntesis para o cantor que barítono ordena cessar todo antigo som: O Freunde, nicht diese Töne. E conclama os amigos, milhares de milhões, cantarem irmãos a Alegria.
Não faço parte dessa confraternidade. Não eu, Elisa crédula.
Heróis vitoriosos. Sob o manto estrelado todos flutuam irmãos nas suaves asas do maravilhoso. Crédula Elisa. Eu não. Orquestrados eles, a batuta vai Beethoven e os violinos indagam sutis em sibilante espiral suspensa nas cordas mais grossas, cellos e violas para o céu. Retesados os arcos disparam frechas metais tambores trovões e centenas de vozes agudas a despencar graves dos campos elísios gritando todos reunidos numa só alma orando numa única canção amigos em amizade, marido fiel da eterna mulher e logo mais Elisa seus gritos sua alma e a deles uma só.
Alegria, Filha de Eliseu, Alegria. Esses seus olhos de susto nascem de mim. Nascem de minha fúria, Elisa, meu desamor.
É num último sopro que a alma entra no mistério. E dele compartem outras almas, dadas as mãos esperam desatadas as suas, você num grito deixará o mistério só para mim.
Eu comando os laços. E o momento certo decidem meus dedos ágeis espertos a virar e torcer os nós e seus apertos.
Desfaço a mordaça sufoco que a impede de gritar. Mas somente no clímax orquestral coro de milhares de milhões de almas a conclamar por sua alma irmã, filha de Elísio, livre da mordaça agudo dó de peito gritará ascendente aos céus.
Refaço o laço.
Veja, Elisa, a ponta um pouco abaixo do umbigo. A seda sustem a beleza do nó. A maestria é da ponta de meus dedos. Veja a grandeza dos meus gestos, o volteio de minhas mãos e a seda sibila excitada por segundos excitada você, entre sustos não sabe ao certo se no círculo majestoso desse entra e saí um nó de perfeição retangular beijará entre os lábios do colarinho a delicadeza do botão. Confessa, Elisa, é magistral.
Agradecidos seremos um para o outro nesse momento solene.
Incrédulo, eu.
De qualquer paixão.
Sentimentos bons paralelas intenções. Desconfio do amoroso par. Sócios anônimos conjugam-se silenciosos no amoroso par. Eu, meus dedos, minhas mãos.
A ponta um pouco abaixo do umbigo e reta move-se discreta à mais leve torção de meu dorso grácil cetim minhas mãos a sabedoria de meus dedos o nó.
Crédula Elisa.
Mulher, mistério. E você, crédula sempre, sempre ouviu e gostou de mistério ser. E ter: colo de cisne, em pele de alabastro, boca rubi dentes fieira de pérolas carnudos lábios sempre úmidos promessa de delícias e você acreditou ser mulher mistério de cabelos negros como a noite céu picado de diamantino pó descendente em caracóis cada curva um segredo anelado emoldurando insinuantes seios níveos que mal se adivinham sob a camisa de cambraia a descobrir umbigo centro do mundo que malmequer desvertebrado verme expulso desse círculo bem-aventurado onde eleitos cantam Alegria radiante brilho divino.
Crédula Elisa.
Ouça a música e goze a entrada passo a passo nesse Santuário morada do Senhor.
Freude, schöner Götterfunken.
Olhos de Terror. Custa-me crer que são esses os olhos que você devolve à minha fraternal intenção.
Refaço a mordaça.
Desfaço o nó.
A gravata, de meu pescoço para o seu, alabastro cisne e meus dedos ágeis e sábios conhecem o nó de que essa seda é capaz.
Os violinos indagam em pianíssimo suspenso.
Esperemos que o coro esgoele Millionem no esboço orquestral e afrouxo a mordaça para que você grite também.
Agora!
Frenesi.
Grita. Grita mais. Junta a sua à voz de crédulos milhares de milhões.
Novamente o suspenso, amordaço novamente.
Freude, schöner Götterfunken.
Além das estrelas a morada do Senhor.
Não vejo em seus olhos a felicidade radiante.
Meu corpo nu junto ao seu.
O nó corredio na alvura desse colo busca desfazer o mistério que mistério continuará em mim.
Entre meus dedos abrem-se os campos elisianos, confino da Terra, planície do rio oceano. Morada dos deuses, regaço de heróis. É à força que verme entro e tomo posse.
Crédula Elisa.
Ouça a música e contorça o corpo em terror para o gozo meu. Eu, alijado de entre os homens de bem, mas o único para quem o mundo guarda dos mistérios apenas um. Eu sei a ilusão morna que mantém vivos esses heróis e meu gozo é viver no desprazer que todos negam ter.
Se não desfaço a mordaça, apertado o laço, sem a liberdade de seus suspiros será pelas lágrimas o escorrer de sua alma.
Elisa, Beethoven chega ao fim com seus enlevos musicais, mentiras em harmonia. Grandiloqüência suprestelar, é nossa vez, e agora uníssonos a seus desamordaçados gritos a dança circular garante coral sermos todos irmãos.
O laço.
Canta mais.
Silente mistério.
Desliza
o nó.
Há Deus, Elisa?

Gertrudes acorda assustada, procura por Vina em seus pensamentos, limpa o suor filho do sonhoterror e, apressada, a porta do quarto descerrada no leito Vina, como sempre loira e linda, ressona o sono das almas gentis e puras: somente eu tenho em mim a morte para quem amo tanto, pergunta Gertrudes para Julieta decepcionada.
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Paulino Tarraf

Versão 01/01/2008
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05/03/1999
25/05/1993

023 Aos pés das virgens.

Conto Romances Arquivo 023

Aos pés das virgens.


Post partum, Virgo, inviolata permansisti. Dei genitrix, intercede pro nobis.

Donata a grinalda virginal, o corpo estendidos braços como quem repousa em paz nos benefícios da oração, jaz Donata Santa em redoma de vidro e, particularmente ela, receberá a visita de Gertrudes hoje porque Vina, entregue ao sono reparador de sabeDeus qual trelosa aventura, não pretenderá outra escapada tão breve, presume a Ama por retorno da Menina nesta madrugada sem se preocupar em ser silenciosa: como sempre não dará satisfação de onde foi e nem pergunto mais cuidando de minhas coisas com o esmero de sempre que para isto fui contratada não por amor. E basta! Nem preciso me conte, da minha parte sei, sem ver. E pronto!
Da soleira do palacete à esquerda ruma Gertrudes direto a Santa Cecília rever suas virgens Cecília orago, Luzia Inês Adelaide Catarina coadjuvantes virtudes fazem-lhe companhia, branco mármore olhos aos céus voltados em prece, para sempre, parece.
De trem, diz Damastor no fluir do memorial em noite fria de junho vim de trem do interior: Aqui cheguei no alvor do século, sem saber, no mesmo dia em que Donata virgem mártir dos romanos pagãos chegaram seus santos ossos em relíquia oferecidos aos fiéis para veneração. Num vapor. Ela veio num vapor de Roma, doada pelo Santo Santo Padre Pio e no amparo do Arcebispo aconchegada em caixote, aqui chegaram em desarrumo vértebras costelas fêmures, e o que mais da ossatura pares e singulares compunham o arcabouço necessário para a envergadura à espera da cera ligá-los como se carne fosse. A caveira incluso, creio, veio também, faltos caninos e incisivos embora. Com a pompa religiosa de então fora feito traslado do Palácio Episcopal ao santuário das virgens, no qual São José, o Casto, ocupa honroso altar lateral destituído entanto de ser orago junto a Cecília, como no Império fora; apenas de vésperas Gertrudes soubera do traslado feito há décadas, narrativa de Damastor Belmonte em serão recheado de memórias. Autênticas, o quanto permite o tempo passado há tanto.
Os ossos na cera plasmada em forma perfeita do corpo, andor de vidro, festivo féretro, ao traslado, quem assistiu jamais esqueceu, Damastor Belmonte esqueceria jamais o dia em que conheceu Jacintho batido de vento o cabelo em gomafix e sólida amizade erigida: a grandiosa procissão na lentidão do andar do povo praticante e devoto com lágrimas contrictas e no andor com entrelaçados lyrios e amaranthos Santa Cecília veio anfitriã buscar sua nova virgem, Santa Donata em Caixão Aberto solenemente carregada nos ombros fiéis para a derradeira morada, a cera feito branca neve não derrete no entardecer e nem do céu caiu a chuva por milagre sequer garoa, dele apenas a beleza das pétalas das desfeitas rosas em lenta queda sobre a multidão emocionada. Ao longe o Filho do Prefeito em companhia da Filha do Conde, de famílias cerealistas a ele por Jacintho apresentadas.
Vai Gertrudes hoje para especial busca em Donata Santa: quando em plasta cera modelado teria o artista dado trato de refazer os relevos de minuciosa anatomia, pergunta ela às mãos de luvas desnudas, ou apenas recobriria o esqueleto de tecidos panos é dúvida sussurrada ao chapéu da aba curta, reservaria a plastia aos contornos da face expressividade das mãos, os pés dentro de sapatilhas bordadas, vai Gertrudes pensando com suas vestes simples na roupa melhor de Vina no armário recolhida, ela agora recolhida Julieta no armário, exposta Gertrudes mal vestida pelas ruas.
Naquele dia do traslado começara Damastor Belmonte a firmar riqueza, milagre da santa testemunha no relato do serão arriçado de inverno, perto de sua orada fez morada reputa agradecido, neste bairro simples dos menos abastados; e lá esconder Vina dos olhos cúpidos rebate Gertrudes em pensamentos, mal sabe ele quem de quem esconde as peraltices, que hoje sei.
Joanna dos Anjos entre suas arrudas não duvidava selados nos escritos superiores a encarnação de Malvina dar-se no exato dia da procissão e neste dia estar Damastor na Capital pela vez primeira reunirem-se seus destinos de cuidar Damastor da Menina como um pai cuidoso de uma filha, ele mesmo guiado pelas Elevadas Luzes conheceu os homens bem postos nos altos escalões sociais, filhos de condes e netos de barões duques da cidade, e Jacintho, novos caminhos para quem conhecia estreitas veredas quisesse mais e não sabia existentes; Raphael e Olga mais científicos tinham certeza das almas de Damastor e Vina terem encontro marcado nesta vida, porém desta mesma vida o percurso traçar-se na capacidade deles frente ao meio adverso lutarem para a redenção dos desvirtuados feitos do passado; novas oportunidades em virtuosas ações, os condes duques e barões se ajudaram Damastor Belmonte o esforço foi dele, de mais ninguém!
Gertrudes pensa, com os calos rendimentos do sofrimento, ser a vida melhor gozada pelos astutos que dela tiram proveito, tortos sejam os caminhos firam os pedregulhos a sola dos pés as poças pocilgas respinguem ao acaso, tomem os viventes o atalho queiram tomar, a vida faz ela mesma roteiro a bel prazer transviada em trívios quadrívios torturas esburacadas abismos repentinos, os espertos aprendem e saem-se bem: eu por melhor aluna seja de nascença virgem até morrer.
Divergem as doutas respostas quanto à reencarnação; se tanto há; havendo, dizem uns, dá-se imediatamente durante o ato fecundante, outros afirmam instalar-se o espírito escolhido no soltar-se o primeiro choro, entra oportunista pela dor do violento ar violar pulmões a claridade ferir os olhos. Assim quando pela vez primeira veio Damastor à Capital, era Vina recém-nada portanto, se tanto.
Tímido pára num moquiço, próximo aluga-se quarto visto em papelão inscrito e, do Bom Retiro hóspede fica, vez primeira e última. Outras vindas e tive melhores albergues em requintada vizinhança, até construir casa própria aqui em Santa Cecília, por louvor à Santa sossegado bairro e uso prático de não ser perto mas não ser longe do que preciso aqui. Ofereceram as francesas lolas para seu corpo gigante a fragilidade aloirada do amor venéreo, recusadas por medo de a syphilis encurtar-lhe a vida que se prometia larga comprida afortunada. Não contou da recusa, sequer a oferta citou, mas entre chávenas de chá no arrepio da noite nada mais escondeu:
Maravilhou-o a majestosa Cidade desde na Ferroviária ter apeado seus pouco viajados pés. A Luz frescor de inaugurada, beladama inglesa na forma e os regulares tijolos, acomoda sua elegantina arquitetura no vizinho jardim botânico, luz brilho intenso a refletir-se no nome de batismo, embora da Luz fosse o convento secular ao lado, no resfolego da locomotiva o céu tinge-se com a fumaça das fornalhas pela chaminé soprada obediente aos apitos de partida, turbilhão de faíscas arranco demorado, e vai! a macchina atrelados vagões de volta a unir as cidades e as serras, planícies e planaltos, plantios e virgem mata.
Maravilhou-o a ronquidão do motor dos muitos carros na explosão da gasolina e as buzinas, variados altura e timbres, a jogar para a lateral das ruas as bestas atreladas às viaturas, nunca tantas e tão apressadas gentes indiferentes a quem indiferente por elas passam viu as temerosas gentes nas calçadas espremidas por um Fiat ou um Daimler potentes a virar numa esquina dezenas de cavalos, inusitada força filha do século a raiar. Monsieur Dumont conductor com enormes vidros a proteger-lhe óculos, noutro as mãos enluvadas na direção o Filho do Prefeito sporthista, cônjuge da Filha do Conde que paris conhece e reverencia. Ou conductores fossem os abonados filhos famílias dos donos das Indústrias nascentes na república adolescente. É a civilização, disse-lhe Jacintho quando apresentados percorriam a pé o Trianon de cercas altas, a cidade veremos ao longe daqui de cima do Espigão: céu e terra proclamam a modernidade: no céu o emaranhado dos fios carregados com o conforto da electricidade domada, o telephone redutor de léguas aproxima vozes no arrulhar amante no vocíferar desafeto, o telegrapho tictacqueia a rússia na manhã de frescas notícias, a radiophonia faz do jazz o bailar universal de nossos pés, o phonographo aprisiona o som que antes desordenado ao vento agora é simphonia a desgustar-se repousado nas salas não de concerto mas no prosaico lar: no subsolo gazes e fezes escorrem por esconsos canos, o progresso conduzido em ordem como positivos encaramos agigantar-se o mundo.
Maravilhou-o a procissão. O andor caixão balouça e nele os ossos de Donata Santa, entre o orfeão de desencontradas vozes uma irreverência desviara a atenção de Damastor para um senhor vestido no rigor da elegância: se o Matte Real é saboroso o Bromil cura tosse, que remédios trará esta Milagrosa ao corpo roto dos aflitos. A um dado mal o certeiro produto. No mister em que a Igreja em passos de gigante Milenar pratica: um santo para cada anseio clamam cruzes tangem sinos pelos ares; o Comércio engatinha: nos bondes circula nas paredes ostenta nos tetos impressos anúncios prometem curas da indústria advindas; no caminho certo ela vai, entanto é parca a eficiência ainda. Muito prazer, Jacintho seu criado.

A banda ataca:
Viva o Papa
Deus o proteja
O Pastor da SantIgreja.

O Palácio Episcopal arde-se em luminárias, bandeiras ao vento, fitas verdes entre laçadas amarelas e a banda no repique das caixas, trombones contrapõem fagotes, estridentes clarins atacam surdos a bumbar, sob o pálio paramentado o Arcebispo protege ao peito o ostensório envolto em xailemanta, os Marianos vestem azul as filhas de Maria branco virginal, os velhos dos sagrados corações de Jesus cercado de espinhos da Virgem trespassado por espada ambos a sangrar caminham decididos a morrer por Vosso amor; e o povo a uma voz fiel repetia

Viva o Papa
Deus o proteja
O Pastor da SantIgreja.

a cruzada infantil de meias trêsquartos o cabelo ao meio repartido dispostos a lutar contra o Infiel, em fila vela acesa humilde cortejo afiança estar o divino entre nós.
O Filho do Prefeito exímio porte phísico, sporthista na roupa descontraído colete polainas brancas gravata plastrão de braço conjugado com a Filha do Conde, mangas bufantes beija o chão discreta saia a rodar a sombrinha colorida seda no céu, enxuga uma lágrima emotiva discrição de elegância ela, que paris a conhece reverente, curva-se à singeleza da Santa pelo Papa doada.
Em lentipassos pela São Luiz ruela nova seguem Santa Donata em adamascado caixão desordenados, mas cordeiros, os mais simples de mãos estendidas buscam tocar as fitas que do andor pendependem; ciosos do melhoramento da vida nesta vida e, se não! ao menos, ganharem paraíso no eterno colo paterno, quando levados forem pela beatrix virgem martirizada em Roma hóspede nossa, anseio do povo carregado de temor, o temor! não o amor transforma homens em crentes, diz Jacintho sem cavo na voz.
Os fogos, chispas e fumaças odor de pólvora ardentes velas, estrondos e uníssonos cantos, o caixão contorna a Praça da República, refeita adornada com lagunas pontes jardim sem grades como queria o Prefeito Prado afim a usasse o povo por coisa pública, e desce pelo Arouche largo e rua, ruelas transpostas praça à vista o campanário clama alvíssaras, as Virgens da Igreja abrem o átrio desdobradas portas à santa novata: duas dezenas de anos depois entra Gertrudes, contrariada por não poder andar de passeio pelo Triângulo vestida de Julieta, consolada de entre as virgens proclamar-se mártir também da voluntariedade de Malvina, sua má-menina.
Dezenas passadas Santa Donata, o olho de vidro desorbita contra a pálida cera que premida cede, num canto à esquerda de soslaio vígil, anônima entre as cinco virgens majestades em branco mármore esculpidas
Ignês Luzia Adelaide Catarina
cercas gentis
invioladas damas
de honra
pareiam Cecília.
Música em simphonia poliphonicos jograis recitadas odes ritmados passos, Cecília ao centro reina-mor no altar principal.
Nas paredes à volta, feito tapeçaria mas em óleo sobre tela, pinturas contam história de martírios: o casamento que não se consuma no degradado ato carnal recebendo do ArcAnjo entrelaçados lírios e amaranthos. O marido, pagão convertido, propõe-se casto como casto se resignara Sanctus Joseph permanecer por mais estonteante fosse a beleza da virgem.
Esculpido bronze da cor do damasco adelgaça o sangrento da narrativa.
Consentido martírio. Ao chão jaz Cecília, a degola interrompida pela mão trêmula do verdugo em repentina piedade, sangra três dias abandonada na masmorra, os dedos unidos indicador médio e anular testemunham a trindade divina, crença cristã entre desalmados pagãos de muitos deuses.
Gertrudes ajoelha-se mas não reza.
O chão coalhado de vermelho vivo a circundar o bronze esverdeado: só poderia ter sido assim se, por três dias, fabricasse aquele corpo tanta vida quanto a luta contra a morte requeria. Dar o sangue. Diziam os colonos da Borboleta, ao limparem o suor da testa escorrido e novamente orvalhado por entre pó da terra e carvão da fumiflamante queimada de abril outonal a tórrido dezembro para a cana, o podão em punho. Derrubar a mata até então inviolada não importa qual mês registre a folhinha, a cinza aduba garantem os mais velhos que no solo virgem faz-se o carvão forragem para o plantio, revirar a terra lançar a semente enquanto aguarda capinar: o algodão promete próspera safra e o café de sete anos de espera cercado de fogo contra a fria geada de certeiro ataque. Damastor vem buscar para benefício a colheita bruta. Do porto de Santos, o mercado estrangeiro é mar singrado a vapor.
No dia em que Damastor veio, milho para pamonha leite para manjar é festa quando Damastor vem, a rês abatida para churrasco, ninguém sabia que no corpo protegido um feto na placenta umbilicado vingava lento. Soubesse alguém, calara-se. Gertrudes vira, a novilha núbil pelo touro montada, se contasse descobririam o que no pasto fazia escondida entre touças.
Cafre! disse Abadiah, os rasgados olhos fechados em horror. Não quero ver! a boca de grandes risadas.
Gertrudes viu. Vida, peso que mata. Sobre o corpo da novilha o touro jogara-se bruto destemperado. O martelo agora desce forte sobre a nuca, a rês desaba. Rápido o cutelo rompe as veias do pescoço, a rês por muito tempo resiste de morrer, na poça as patas mexem-se em vão, o corpo treme, coágulos. Aberto o ventre, para um lado o intestino pleno de verdes, para o outro o feto arremedo das formas que jamais terá; o corpo rosa transparente, olhos fechados globos azuis, o coração mudo.
A pão e água, masmorra! sem som a boca déspota sela o destino do plebeu. Encantados, os olhos projetados na tela coalhada de luz em viva narrativa, o povo do lugar ri e chora conforme no nada drama e comédia em contraponto mentem verdades; Gertrudes, atenta a quantas direções pudessem olhos e ouvidos alcançar, viu e ouviu de Damastor achegar-se com a proposta indecorosa a resposta honrosa de Abadiah que, enquanto mulher de Alberto, contudo, não será de outro homem seu corpo intacto.
Acreditei, então, ser a recusa oferta de fruto proibido, à dificultosa colheita mais apetitoso se pronuncia. Ela calcula para Alberto morte em breve, essa minha crença!
Nunca entendeu Gertrudes com tal clareza por que se recusaria Abadiah a alguém como Damastor, homem da phísica sporthista, jovem belo promissor. Quando o sexo se aquece, não há quem seja feio ou aborrecido lampejados todos por um amor passageiro feito a própria chama, seguida das cinzas do arrependimento. Não se prometera virgem nem para os céus em pressupostas leis ou dos homens quisesse as pretendidas condutas seguir, sequer se reservasse como eu por horror não me entregue enojada embora carregado o corpo de desejo, por feia ou desajeitada nunca seria recusada que era mulher de airoso andar das perfeitas pernas a passear formoso rosto, nos seus rastros profunda admiração e respeito carreava: foi devota do amor. Contudo.
Na época julgara que, à recusa, na intimidade seguisse total entrega ao despudor: enganei-me em minhas malícias. Inteirei-me dos pormenores mais condizentes aos fatos no leito de morte de Abadiah, a quem ouvi como se confessa alguém na hora extrema. Alberto era o motivo, contudo!; e não me arrependi sussurrou ela entre os estertores. Eu, que duvidei, aqui de joelhos me arrependo.
Não era capaz de magicar Abadiah tão contida quem a visse, respostas curtas entre risos cortadas, olhar de brilho rápido boca úmida de ter a presa sempre à espreita para as saciedades impossíveis, os desenvoltos gestos os passos firmes, ir e vir a notável Abadiah, presença requisitada, ausência lamentada. O fogo rege seus atos, como entender a contenção em meio a tantas labaredas.
Contudo Abadia, corpo e alma a Alberto pertencentes.
Porta aberta entram, homens e mulheres fiéis solitários apartados na mesma solidão, cada um à sua maneira órfãos da cidade, buscam acostamento no manto da misericórdia, lento andar desenham a cruz no corpo encolhidos entre as subidas colunas gigantes, uma noutra solidárias testemunhas vermelhas da fé abafam nas alturas os passos e qualquer ruído, houvesse algum, como se oração fosse o suspiro o soluço o gemido os sussurros sem som os lábios em mudo movimento reproduzem a prece em clausura no peito em desalento. As cordoalhas do coração agigantam-se no interior infinito do átrio e, se antes para tão pequeno cavo imensa dor, amansa-se o fervilhar inquieto da vida na certeza de ser curto o sofrimento quanto curta a mesma vida frente ao eterno repouso, promessa contida nos santos a contemplar dos grandes altares a pequenez humana.
Nunca acreditei no amor de Abadiah por Alberto, eu que nunca acreditei no amor. Era para acreditar, voz corrente do povo nunca ter visto feição de desvelo abnegado quanto em Abadiah no dia-a-dia presente. Nada a ver com amor, penso sem conseguir refutar-me, parente próximo do interesse ou parecer orgulhoso de reconhecimento público de estremada bondade. Abadiah, jamais vi em sua boca articularem-se os lábios, conquanto aos olhos sempre quentes, para falar amor fora da frieza de sons convenientes a uma narrativa, palavra presa entre outras num relato bebido pelos ouvintes como maná de uma deusa advindo. Se fala Damastor, amor, é vocábulo sublinhado em cavo profundo, distinto em cores vivas traços firmes. Quando falava Alberto, ainda sadio a bela voz pelo quintal ecoada, a quentura do amor e o hálito saiam do mesmo peito. Também neles nunca acreditei, os homens, culpa deles o mal do mundo sejam os cabeças na pátria sejam reis do lar, o mando não os abandona do berço ao túmulo em proteção disfarçado.
Mas Abadiah cuidou fiel de Alberto, caído em doença desde as bodas comemoradas por todo arraial e, com melhoras festejadas como cura e recaídas tidas como desengano médico, ela reconhecida viúva para novamente ser mulher dele até a seguinte piora. Pelo povo apreensivo das pioras as festejadas melhoras: de Abadiah porém, confesso minhas santas, sempre duvidei por onde as festas e os sobressaltos andariam, se entre melhoras se entre pioras. Contudo Damastor não conseguiu dela aquilo que um homem quer de uma mulher, nem que tenha de casar.
Damastor, quanto Abadiah, bem-vindo o falecimento conductor de novos festejos de casamento. Damastor dizia saber esperar, não teria feito fortuna sem confiança no tempo passando trazer consigo novas realizações, basta não dormir no aguardo de que do céu caiam benesses. Confirmado por Jacintho: pessoas há que convertem os minutos em diminutivo acreditando com isso compactar os ponteiros do relógio; outros colocam o tempo no superlativo, com isso magicam dilatar seu decorrer. Eu dou ao tempo a nobreza de minhas ações. Eu também, completa Damastor.
Tanto que conheceu, na alta sociedade, mulher de fino aparato parcas prendas domésticas mas que paris conhece de photos e colunas sociais presente na moda seu bom gosto para modernidades, uma das primeiras a abandonar as anquinhas e dar às saias centímetros a menos ao calcanhar, maneiras comedidas e sereno riso na propriedade das situações, Damastor seguro de ter a fortuna acrescida e não os beijos de Abadiah o que na vida almejava dando ao tempo seus devidos passos, aconselha-se com Jacintho quanto a casar-se:
Um casamento será melhor afortunado quanto maior as posses das famílias unidas; se não puder como eu permanecer solteiro e bem servido, eu diria que uma mulher sempre ajuda.
Desinteressada de Donata, desgosta-a a pose de morta a fragilidade da cera a corromper-se qual carne aos vermes dada, Gertrudes mantém-se de joelhos junto ao bronze de Cecília como quem reza.
Sou mulher séria e prática, quem magica quem devaneia, imagina pensativa supõe e acredita, cisma e teima quimeriza e sonha, não é comigo tais perdas de tempo: eu só tenho certezas, só acredito no que vejo, e pronto!


Arquivo 023 de Conto Romances
Paulino Tarraf
Versão de 07/12/2007

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05/112/007
Original de 19/06/2007

01 Raphael, Olga, seus amores



Conto Romances Arquivo 01

Raphael, Olga, seus amores

Raphael, Olga e seus amores cinco descerem pela calçada, eles ternos de esmerado corte tecido de refinado têxtil, ela o esvoaçante vestido na graça do vento, somente em dia muito especial.
Hoje deserta rua, cães vadios amolador de facas vendedor de vassouras raros aqui ali um transeunte, habitual segunda-feira, dia corrido nas rotinas s’esvazia.
Pela calçada a falta de pressa do vendeiro de alface passa, para a rua abre-se a porta verde da alfaiataria, dentro roda a sempre cadenciada vida. Alfaiate na alfaiataria silencioso chuleia e cirze solitário Raphael. Alfaiate sim, mas alfaiataria é nome comprido demais para a estreita fachada e pequeno cômodo de porta entrada única. O Capriccio Italiano na electrola gira, é uma Victor!, sons de doces harmonias, incansáveis pedais o ruidoso rolimãs feito matracas faz cantar a machina de costura, é uma Singer! Ao fundo dois degraus, empós outra porta leva ao umbral da casa. Além, o breu.
Rapahel, afinados ouvidos, no meio da bulha distingue chamado em silvo agudo vindo do fundo:
Sim, Olga!, responde ele ao silvo, a língua no céu da boca alonga a sílaba inicial em Olga.
Alfaiataria, da casa enorme Raphael ficara com a sobra, concessão no corredor de passagem da rua abriga o necessário ao ofício. Prateleira das variadas casimiras da parede pende, guarda-roupa reformado é armário com gavetas para utensílios, antiga mesa é balcão para corte do pano, o cômodo embora estreito acomoda-se a tudo além de, um manequim de provas em alpaca envolto feito saio, face de esbatido rosa os olhos vesgos num ponto fixo; uma victrola não mais de manivela moderna electrola disputa a primazia com a macchina de costura moderna de pedal com rolamento e roldana, não mais manual; a macchina enquanto feroz a sua agulha cose canta canto rival da victrola a girar um disco sonoro ao suave toque da agulha. Movimentos em cadência de Raphael. Algumas cadeiras, para a prosa de visitas, acomodam os mesmos de sempre que à tarde virão. No estreito corredor cabem todos, feito bondoso coração.
Raphael alfaiate, qual numa entretela metido por enruste, de pé atrás do balcão vinca a unha na fazenda preta gola e losango da lapela, risca de giz azul cavalo da calça e cós, recorta tesoura majestosa da manga o cavo; o manequim companheiro, olhos vesgos de jabuticaba verde ainda, vestidos paletós em alinhavos casimira ou linho, recolhe surdo os espaçados suspiros de Raphael em coro com o clarim do Capriccio. Raphael, nem tanto só quando companheiro pelas várias alfaiatarias tem-no seguido o manequim, seu desde antes da guerra englobar o mundo.
Alpaca linho e percal aguardam no balcão risco e corte.
Nem tudo entretelas, nem só o silêncio do chuleio ou o cantarolar esparso do vazio das horas. Seleção matinal meticulosa do fundo musical é o prazer de Raphael compor a ordem das melodias, entre quatro paredes abrir a trilha sonora no tempo e no mundo, várias pátrias variadas épocas: Capriccio italiano entre todos principal, Bolerô de Ravel é passagem, pour La Mer de Trenet vis-a-vis La Mer de Debussy, para a Doce França ao ritmo de La Valse, Ravel de novo convida à dança; modernas gaulesas castanholam sedutoras habaneras feito hespagnolas fossem orquestradas por Bizet; de Verdi triunfal Aida conduz Raphael a falsos orientes onde nascente o sol ilumina a Butterfly de Puccini senhor de sua sina desditosa por ele escrita; hóstias negras de rebrilhante vinil, acariciadas na casimira, aguardam em pilha a vez de rodar no prato giratório, oferenda solene entre os dedos de Raphael sacerdotal.
Giram, companheiros de Raphael. Roldanas e rolamentos no canglor do afã diário. Doçuras musicais.
Cantarola junto, se não assobia um tom abaixo, sempre no compasso, deformada melodia. O Capriccio Italiano, bisado durante o dia, faz parte da história de minha vida repisa sussurrado ao manequim imóvel, que vesgos olhos pousa no tempo desbotado embora, também ele parte repassada da vida. Tantos anos corridos na pressa da ampulheta juntaram amigos e pó.
Raphael feliz.
Agulhas e sons.
O pé no pedal.
De música em música, assim caminha o principal do dia, tesoura no corte ou agulha no cerzido, macio silêncio, só a música imperial.
Acionado o pedal a macchina primadonna introduz, cantora, profana cadência. Percalços para Raphael. A agulha guilhotina o som da agulha rival.
Sua alma, sua palma; diz Raphael, a língua palatal. Se em Olga delonga o ol, gosta de palavras qual alfinete alma espiritual álcool algodoal, nelas a consonantal alvéolo-dental alcança o céu da boca, dito cel bucal, pela língua demoradamente acariciado, como anotara Benedito Rui no rascunho de sua biografia.
Sua alma; e num gesto o dorso da mão direita escorrega a palma da esquerda. Sua palma, era o dorso da esquerda a escorregar a palma da direita. Explica: a alma transparece na palma da mão, o íntimo exposto ao mundo.
Alfaiataria, aqui reina Raphael. Entretela rua e casa. Casa dentro, Olga imperial. Larga em desmedido comprimento. Muitos cômodos. Verdejante quintal.
Luminoso divisor alfaiataria barra, com seus móveis manequins panos victrola e combinados sons, pedal de costura canto solo coral metais quatro cordas piano trio de câmara tutti sinfônico orquestral, a sala em breu.
Isola, nem tanto.
Vizinhos tudo sabem. Se não sabem, sabem a modo vizinho do visível para além das conhecidas dimensões, a oressa que dos corpos sopra e, traz da alma à palma, não só ahúra-masda também coscorão das vidas passadas. E a alma acaba por revelar-se na palma quanto maior seja a barragem entre estas dimensões.
Mais velados os sentidos, mais se aplicam vizinhos no transe das intuições.
Pespontam entremeios nos enredos. Ao cotidiano costuram numa trama épica, revestidos banal e eventual de esplendor, corrigidos no ajuste do cós à amplidão do olhar. Um viso vislumbre indistinto sinal um leve murmúrio fortuito rumor, apuram audição de felinos noturnos aguçam de lince o penetrante sondar e pronto, faz-se platéia permanente do mundo, assíduos, argutos, persistentes. Ocultos nas brechas do lar. Transeuntes eventuais. Vizinhos janelas do saber.
Raro Olga dar-se à vista; quando vista não parece sofrida no algoz de mulher brilhar, na força do escovão palha de aço querosene e cera, o piso; assim como servir almoço e janta.
Mercadinho, venda, farmácia, açougue e padaria jamais receberam de Olga a presença. Fogão, vassoura, tanque, pia, sabão, não macularam a graça de suas mãos.
Ao silvo de Olga:
Sim; molemodula Raphael para o breu voltado.
A voz soprano alteia demorado el: Raphael!
E Olga dá-se à vista. Surge aparição na lâmina aberta sobre o degrau da porta repentino corpo, luminal no breu, um braço acima da cabeça apóia do indicador a unha postiça e vermelha no verde batente, a axila expõe-se azulina sob ombros desnudos pelo decote e outro braço em alça espalma a mão nos quadris envoltos na saia ramada de cintura baixa e pregas largas.
Cabelos curtos presos rentes, ramonas grandes feito pentes e pretas:
: Raphael!, queixo elevado pescoço sem dobras, a quente voz chama.
No rosto untuoso do creme facial as sobrancelhas arcam marrons em risca de lápis:
: Raphael!, cera egípcia no buço, a sussurrada voz.
Repentina Olga, e linda.
: Raphael!, repentino desaparecida chama.
Desaparece para além da alfaiataria, além da sala escura; estética e plástica, brilha Olga entre cristais.
Um dos aposentos, acomodou-o em espelho: paredes e teto, um forro de reflexos. Olga multiplicadamente ali.
A ginástica inicia no espreguiçar-se gracioso alongamento de braços pernas pescoço, cauteloso virar-se inteira para não criar pregas, minucioso trato boca testa pálpebras. O sorriso leve aos lábios não vinca aos olhos sequer ou sulca a testa. Corpo cuidado no dia-a-dia.
Cintura firmes carnes dosadas medidas: umbigo redondil, as coxas, meu orgulho, diria o poeta colunas matemática perfeita do escultor para divinal estátua sustentar.
Glicerina para o coscoro no calcanhar, liso e sedoso ao tato e olhar, umectantes de base uva e as unhas fortificadas em iodo e limão, o esmalte a pincel toque de pintor. Meus pés, meu mimo: graciosos e fortes para os saltos enormemente altos, sapatos abertos em despudor.
O banho imersão em leite de cabra tépido, tonificante lassidão para o suado esforço de estirar, contrair, relaxar. Bórica em algodão embebe o descanso das pálpebras.
Linda!, confirma no espelho o escravo olhar.
Então o café matinal:
Raphael!
Apenas por ele sensível ouvido:
Sim! Moduladamentemole.
É hora!
Raphael silva e da rua o Rapaz da Marmita e Recados corre sentar-se, guardião da alfaiataria, frente ao manequim. Proibido de entrar na casa, se entra não passa do escurobreu.
E nos pomposos acordes iniciais, de Strauss ou von Suppé, Raphael galga os dois degraus para a sala oculta em trevas. Cheiro de café e torrada; e nos acordes finais volta o Rapaz para as bolinhas de vidro, Raphael a sentar-se aciona o pedal e a macchina da capo canta. Brilho da casimira em outra gravação, repouso de Olga.
Um sono leve prepara-a para o almoço de carne magra, folhas verdes e coalhada no meio do dia. O pepino reserva-se para creme facial, fórmula psicografada por meus guias espirituais nem o farmacêutico decifra pois vende, dos componentes básicos, alguns.
: Raphael!
Meio-dia de plena-luz:
Sim; melomodula Raphael.
A agulha espetada e descalço o dedal, descruza as pernas devagar enquanto repousa a casimira na macchina calada e sobre ela os óculos. Dois degraus acima sobe e some no breu. Volta logo e silva. O silvo agudo arranca da molecada da rua o Rapaz da Marmita e Recado, que correndo vem e recebe ordens enérgicas. Obediente sai. Busca na casa da esquina do quarteirão de baixo a Marmita.
De volta posta-se Guardião da Alfaiataria, olhos nos olhos do manequim, vesgo semblante plácido sorriso alegre e colorido, paletó alinhavo branco sem mangas. Raphael espeta a agulha, descalça o dedal, descruza as pernas, repousa o óculos, galga os degraus e some no breu da sala escura. Cheiro de bife e alouradas cebolas.
Silêncio. O vesgo do manequim nos olhos sonolentos do Rapaz.
Olhos do Rapaz nos vesgos do manequim, Silêncio musical, almoça Raphael na solidão de alfaiate, entreaberta a porta para o breu.
Retorna Raphael.
E o pedal, sonora macchina e agulhas sonora victrola.
Bela tarde. Acordeom ou bandoneon, depende de Olga saudosa, cantam estribilhistas Acuña-DelCarrill a Meia Luz canta La Môme o Amor. Mudo escuta Raphael.
A depilação é meticulosa. Não sobram pêlos na sobrancelha. No rosto o lápis arca um marrão maior. As axilas, melhor expostas por não terem dobra nenhuma, azuis.
Aos cabelos cuidado menor. Às perucas, paixão de Olga, maior. E num quarto acomodaram-se prateleiras, mostruários de calvas em porcelana as justapostas cabeleiras de variadas cores e tamanhos a receberem escova e trato como animais de estimação.
Três horas!
Silvo.
Rapaz larga o balança-caixão com a molecada e, olhos nos olhos do manequim vesgo, guarda a alfaiataria vazia, o café perfuma.
Verdi ou Puccini. Traviata ou Bohème. Wagner, eventual, só aos sábados, matinal.
Hoje Rossini, e o fortunadíssimo Barbeiro da alfaiataria uma alegre Sevilha faz. Raphael feliz.
Pérolas, prata, ouro, esmeraldas, brilhantes, rubi: colares, brincos, pulseiras e broches são todos jóias verdadeiras que dentro do espelho Olga combina-os entre si, nua ou vestida com a recente remessa de modistas da Capital.
Crocodilo, antílope, camurça, leopardo, vitela, porco, vicunha, marta e zibelina: cintos, bolsas, sapatos, casacos e estolas. Cômodos no quarto do couro.
Tarde da tarde. Olga apronta-se bela para a noite.
Seis!
Gounot destempera o cravo de Bach.
E, nos rádios vizinhos em uníssono coral, Gabriel Aracangelus saúda Maria.
Até amanhã, seu Raphael.
Se Deus quiser, meu Rapaz. Seja pontual.
O Rapaz desaparece na esquina, de rádio em rádio Ave Maria, som parado no ar.
Raphael cantarola em falsete com o tenor.
O Anjo do Senhor anunciou a Maria, prega em voz solene o locutor.
Allankardecista e como tal espiritualista cordial e caridoso, tem suas ressalvas para com a oração e adoração. Somente a ação acalma a dor, restringe Raphael. Atrás da macchina uma estampa adorna a parede. Robusta mão arranca a dor da palavra Adoração, em minúscula dourada. Abaixo um dístico encarnado: A dor será tirada pela ação. Raphael discorreria horas sobre isso. Mas impossível ficar insensível à audição da saudação do tenor Gabriel mesmo com o cravo soando harpa.
Sou incorrigível romântico, ressalta Raphael.
Entretanto a entreteia.
Eles começam a chegar, os Três. Despontam na esquina. De gravata e paletó, de colete xadrez apenas um. Às vezes juntos, quiçá separados; dois primeiro e o outro após. Passo lento na fresca da tarde engolida pelo olhar entretido dos vizinhos. Nunca faltam, os Vizinhos. Nem os Três.
Uma lâmina da porta fechada.
Entram um a um, ou juntos os Três, sentam-se magros ao redor do manequim. Um deles mulato claro. Outro pálido magro. O mais novo, a pele creme, o colete xadrez a camisa de meia e três botões, o bigode tinto avermelha a boca.
Radialistas, jornalistas, convictos allankardecistas conversam muito, do jornal ao espiritual.
Surgem os Vizinhos, sorrateiros. Vultos moderam o andamento quando fronteiros à porta. Os olhos de viés, no vão aberto verde têm por entretenga adivinhar o passado além.
Vêem o manequim desnudo e Raphael, dedal no indicador, alfinetar alfaiate o paletó no mais robusto, de bigode tinto cabelos de negro pó retirado o colete.
Ouvem Raphael espiritualista alinhavar metafísica enquanto faz alterações na pala, vestido o manequim; um terceiro some pela escada escuro adentro. Para um passe:
Crêem; olhos malícias, ouvidos sátiros, língua mordaz; variações em tom menor para um tema singular.
Uma valsa vai, uma sôfrega polka inda, e some com os outros dois a escada para as luzes; concerto ligeiro a várias mãos, acordam ao final os Vizinhos. Palmas.
Geme o acordeon une chanson française, qualquer chose de rendez-nous nesta noite mon amour.
Raphael dobra os panos, encapa os discos, fecha a macchina, guarda a tesoura, agulhas, linhas, giz, alfinetes e dedal.
Permanece mais um pouco, até o escuro aprumar ortóptico os olhos do manequim. E Raphael completa o verde da porta que falta.
Somem os vizinhos. A Hora do Brasil toma conta do ar. O escuro conta da cidade. Os cochichos dos seroens.
Fala-se em sessão espírita; os cinco de mãos dadas sobre a mesa branca Olga medeia do além mensagens de amor entre os homens.
Duo, terceto, quarteto, quinteto, Olga solista.
Falta para sexteto o Sexto que vem da capital. De quando em vez. A platéia aguarda o principal.
Descerem ela e os quatro pela calçada, fato raro de se ver.
Descerem ela e os cinco pela calçada, quem viu contou vantagem quem não viu jamais se perdoou.
Acontecer suntuoso com aura, início insidioso, ápice monumental. Daí pressurosos os Vizinhos rastearem as advertências do evento, quando!, e postados em esquinas disfarçandos intentos, engraxar portões arrimar cercas levantar muros pintar paredes, visitas delongadas prosas presos à porta, vagaroso deslocar-se de uma a outra casa.
Atentos a feriados, fins de semana prolongados, datas prováveis somam com outros sinais:
Um sinal é paramentar-se o manequim com terno de importada casimira. E, as medidas e ajustes toma-os Raphael em cada um dos Três, entre a Ave-maria e a Hora-do-brasil: para um é perfeito o colete, ao outro a calça veste bem no cós embora curtas pernas, e o paletó é no terceiro o caimento da cintura contudo os ombros caídos exigem perícia no corte e ajustes no enchimento; reservada a manga para o exato braço de Raphael, dentre eles o de extensão maior: é o Sexto agigantado de corretas proporções, distribuídas desiguais entre os Três e Raphael. Nenhum deles, nessas primícias, some na escada para o breu, antes dos outros.
Vizinhança atenta nota e novos sinais coleta: Folga do Rapaz é certeza da vinda próxima.
Raphael silva e comunica ao Rapaz não venha a partir de amanhã. O Rapaz cambalhota e as marmitas suspensas por três dias. Suspensos vizinhos desde então.
Chegam os despachos. Por via férrea caixotes de tamanho vário, diferentes dias, endereço certo. Alfaiataria. A cada entrega os Três radialistas não apenas chegam juntos, mais cedo chegam. Uma lâmina verde fechada, ajudam Raphael desencaixotar uma vitrola nova, acústica perfeita em caixas potentes, alta e fiel em disco vinil; raros alguns. As perucas sapatos saias e vestidos, supostos nos pacotes, Olga ao correr dos dias lento desembrulhará. Sempre surpreendida.
Folga do Rapaz, a marmita suspensa, no manequim a casimira inglesa, o despacho ferroviário: dois dias depois ele chegará. O Sexto. Cognominado Secs pelos Vizinhos.
Chega pela manhã. Discreto, só, direto da estação do trem de leito desde a capital, sem malas desce no ponto do Circular. E sobe o meio quarteirão da esquina à porta verde da alfaiataria, fechada. Tem chave.
Em dia normal Raphael silvaria altíssimo, tão longe se distraía o Rapaz da Marmita a brincar. Hoje dia especial, tão próximo se posta moleque, só não toma o lugar do manequim por ser a folga cabal, inadiável e irreversível: nunca brincou tão perto da alfaiataria.
Criança é distraída quanto brincar é distração. Desatentas a ponto de não darem alvíssaras da chegada. Quem o viu primeiro foi a Crocheteira, idosa de boa vista, que desde a folga do Rapaz da Marmita não mais deixara o portão.
Visto o Sexto, semi-abertas portas janelas amplo-vão, cresce no movimento lentas idas e bem lentas vindas da farmácia à padaria e o retorno à farmácia completa-se com o escolher uma a uma as verduras da quitanda, da quitanda para a venda o cheiro do pão fresco sem pressa a fila coleia a esquina da padaria, se o sol queima o meio dia as árvores derramam sombras nos grupos atentos e vizinhos visitam-se nos beirais de entrada em pé as longas despedidas, a tarde escorre nos sons da vassoura a rascar calçadas, do esmeril amolador de facas, pancadas desamassam tampas e panelas de lata, matraca vende biju, apito sorvete, mariamole flauta, mais intenso ao fim do dia em que foi visto o Sexto.
O Anjo do Senhor Anunciou a Maria no céu estreladiurna alva única no azul vapor entardecido de vermelho a saudação em feitio de oração cantada entre acordes e apertos no coração de abertos olhos para as lâminas da porta em vão.
Ave apenas de vogais sustenutas na gorja do arcanjo-tenor, as notas no ar musical e das gentes o olho na porta aberta em vê, atentos aguardam surja alguém, mas nem no Maria vem.
Gratia plena e surge emoldurada em verde: Olga.
A franja desce até o arco marrão da sobrancelha desmaiada em cinza para os cílios de pesado negror.
O lápis em dois riscos ousados rasga em lagos as pálpebras onde se banham dois globos azulentes-artificiais.
Brincos brilham adamantinos por entre os cabelos negros, impecável pajem acariciando os ombros nus. Brilhantes enroscam-se no pescoço e mantêm na ponta, insinuando afogar-se no seio, um rubi da cor da boca de entreaberto sorrir.
A saia, vaporosa roda de ramagens verdes termina em vermelhas rosas estampadas na blusa presa por tênue fila de esmeraldas em alça falsa, ajusta-se dos quadris para cima e amolda os peitos oferecidos.
Olga anda. Os pés, minúsculos desnudos flutuam soltos no ar ao som dos altos saltos de vidro. A saia balança e cobre balança e descobre maciços carnais, escuros veludos, profundo perfume confunde os cheiros que a tarde ousasse produzir.
Sozinha desce até a esquina. Olha ao léu, e volta, os vidros nos ladrilhos, desaparece no verde umbral.
Ninguém se move: haverá mais.
Agora eles, os cinco, saem.
De terno, corte impecável que o manequim vesgo e sorridente usou, alinhavado, à espera da prova para a magistral confecção. Ficam por ali. Sem pompa, distraídos quase. Um entra, outro sai. Calmos. Ou na esquina nada esperam. Como quem sem pressa espera, mas.
Os vizinhos entr'olham-se guardiões.
O arcanjo-cantor: Ave! Maria!
Em estacato clama tenor:
Maria! Maria!
Perfume.
Olga porta assoma.
Lentamente sai.
Raphael fecha lâmina a lâmina em chave a verde moldura.
Os quatro aprumam-se, fronteiros.
Sexto, gigante, derradeiro.
Ela primeiro. Destaca-se à frente.
Saltos de vidro saia rodada.
Esvoaça
lento cerimonial,
Noturnália de Divas
com outras estrelas Olga compõe.
No além da esquina, na dobra do tempo, Olga vai.
Dores atrozes.
Em arpejos diluídos
Acorde final
Amém.


Arquivo 01 de Conto Romances


Paulino Tarraf
Versão de 31/10/2007
25/03/2005
Ligeiramente modificada de 20/01/03
Versão de 180305 ligeiramente modificada
de 080704 ligeiramente modificada de 20/01/2003

03 Prazo e preço fixos

Conto Romances Arquivo 03

Prazo e preço fixos

Loja das antigas, antiga de ter dono e nela trabalhar o dono duro e dedicado.
A mão esquerda protege espinha e rim, a direita destranca em solavanco a porta de ferro, enrola-se ela desenrola-se ele ambos para cima, e de dentro amornado bafo desprega-se das fazendas multicoloridas em peça e retalhos alpaca brim seda linho e algodoim ordenadas em prateleiras de madeira o balcão, dispostas miudezas sabonetes enfeites perfumarias e talcos em fiteiros por vidros protegidos, abrem-se à vista para ele. Como todos os dias, nesta Segunda igual.
Entra com orgulho na rotina gostosa laborioso dia: balcão a peroba lustrada, metros medidos tecidos cortados tesoura em punho, ágil sobe escada das prateleiras desce rolos de fazenda nas mãos equilíbrio estável, piaçaba e espanador sorridente se das ruas o carbono insiste moderno escape volátil de gasogênios fordes bate no arabesco do vidro em moldura mogno, ele é, atrás da Registradora entanto, permanente sentinela:
Um tranco e tilinta o troco.
Hipermétrope incipiente e leve astigmático: venderia saúde não fosse a suspeita de alguma novidade nos rins, e fraqueza moderada em reservadas partes.
Uma guerra além mar feito febre influencia o globo ameaçando pelo mar e ar derruir fronteiras, um medo mundial.
Aqui dentro paz imperatriz: aos olhos do dono o dia desenrola-se num tempo fito.
Substituto dos burros lá fora o bonde guincha elétrico, rival dos furgões a buzinar estrídulos entre rolos de fumo, compassadas as charretes faíscam os paralelepípedos de ferraduras e arriscam disputar passageiros a preços menores e conforto de assento. Os burros descansam.
No soquete a lâmpada de quarenta velas, difusa luz.
Outras lojas perdem-se em sociedades anônimas, diversos donos da mesma matriz em filiais dispersas empregados vários. Nelas balconistas de calça azul camisa branca de colarinho duro manga comprida, tesourinha desembainhada do bolso de moedas picota mostras do tecido, sempre na porta prontos a sorridentes servir.
Aqui, não. À porta gentil Manequim de papelão dos ombros cavos ondulada em toga grega a casimira cai macia a beirar o chão, olho azul e rouge rosa namorica o transeunte e, se entra freguês, mesureiro o dono cerimonioso meio sorriso encaminha o bem-vindo até a peroba de rebrilhante uso: desdobra a fazenda aos olhos do freguês em mostra e polimento.
Garante o dono, pela presença, a qualidade da mercadoria. Tem um só empregado. Moço aprendiz, de Balconista chamado. Pontual. Honesto. Limpo. Educado no trato.
Admitido o balconista afastou-se, dono, para trás da Registradora donde nada fala de tudo que vê astigmático e hipermétrope leve. Gosta do Aprendiz acariciar a fazenda com volúpia, olhos fechados, os quadris colados no balcão, suspiro contido; como eu fazia nos meus começos, pensa o Dono compreensivo.
A Registradora, sua nova diversão: no ato do troco a um toque abre a gaveta automática que delicada afaga-lhe a barriga com dois leves sacolejos. Ajeita o ventre estufando-o ao encontro do alcance carinhoso. E pausado, com pequenos socos leves e lentos, devolve a carícia, conta as notas de troco retiradas num repente da mola que as prende no escaninho, as moedas de cobre pelo uso reluzem feito ouro, num sorriso repassa ao freguês, e decidido arremete o ventre fechando a gaveta de vez.
Empregado, um. Fregueses, muitos. Para varejo e atacado. Antigos, de crédito seguro; novos com recomendação.
Abastados fazendeiros do interior, com suas manteúdas, para compras milionárias. Cabelos d'ouro e dentes madrepérolas esgarçadas, sopram gritos finos satisfeitas da vida por mostrarem-se em público com seu amor de meia-idade. Encandeiam-nas o reluzir nos mostruários protegidos de vidro perfulgentes pares de brinco, pulseiras entrelaçadas a colares de várias voltas de pérolas gigantes a rivalizarem falsas com o vermelho rubi da jóia rara nas pedras incrustada em aros baratos de caros anéis. Seda chinesa, pintada à mão no Brás. Tudo meu, tudo meu dizem a boca de bâton às criadas discretas. Sabonetes de paris cheiram perfume nos estojos esmaltados, o pó de arroz impresso francês na redonda caixa renomada marca.
Também do interior os libaneses, mascates de bigodes turcos. Pois a loja tem, com orgulho e satisfação, preços módicos e ofertas de ocasião. Na peroba lustrosa descansa o metro de pau amarelo, vizinho da tesoura gigante. A escolha recai sobre os retalhos. Brim cáqui sanforizado, chita e chitão de cores firmes em padrão original, garantias de não encolher, certeza de não desbotar, arrematados pelos beduínos das verdes roças do sertão, deixarão o cheiro da fazenda nas salas de chão batido de terra e bancos de pau. Entram em caravanas de patrícios. É questão de preferência serem, as compras, feitas aqui e não na Vinte-e-Cinco de Março e imediações dos primos entre si. Malas em corcovas nas costas carregam dedais agulhas linhas correntes e retrós, espelhinhos com redondos retratos de jovens enamorados os cabelos em ondas cercadura de rosas ou ovalados com estampas da Senhora Aparecida em manto infinito de estrelas brasidas, os brincos e colares de menor qualidade para mascatear e, nômades sem oásis, abastecer de belezas a vida roceira dos longes daqui.
Dos bairros, as donas de casa ou suas domesticas, freguesas dos trocados, levam outros miúdos e dedos de prosa. Botões. Colchetes. Ramonas. Alfinetes. Murmúrios.
Mas advogados; e até médicos; gravata e linho ingleses. Chapéu, especialidade da casa desde quando, porta para armarinhos, recém casado herdou do pai e fez crescer, bom filho, o negócio nas marcas prado ou cury tanto faz desde serem de qualidade superior. Sua dedicada mulher, então, sentada agulhas em ágeis movimentos, preparava o enxoval do filho que, desígnio de Deus, não tivemos. Ainda hoje rara vez vem senta tricota e conversa. Freguesas, de chapéu e luva estufada nos grossos dedos de prosa rala .
A guerra d´além mar lançara, nos tempos antigos, estilhaços de crise porta roliça adentro. Sofrera aborrecimentos. Noites de sono perdido. A crise da Guerra explodiu Carestia sem igual. Faltaram farinhas, faltara pão. Açúcar e óleos racionados. Câmbio Negro. Em suspeitos armazéns comerciantes escondiam sacarias à espera de preço melhor.
Ganha-se dinheiro na crise quem sabe trabalhar; sussurrava, em bigode retorcido, um primo irmão de seu pai.
Rareados os fregueses, o Dono duvida saber trabalhar. E sofre. Sem sociedade anônima com quem dividir a dor e o desgosto.
Os filhos que Deus não deu, agora se alivia de não ter. Deus é sábio.
Envergonhado de empobrecer, são reais demais as noites de insônia. A dedicada mulher, carregada de preocupação, levantava-se pronta a servir-lhe chá, a ele que detesta chá: bebe que faz bem! Bebia e dormia, pouco e mal. Selecionou melhor a freguesia: vendas a prazo só para os de reconhecida reputação. Preço e prazo fixos: noites sossegadas e melhor dormidas. Mas a crise ronda. Quando não as febres as bombas dos italianos anarquistas e a cidade furada a balas por militares revoltosos.
E os roncos da Dedicada. Mantidos mesmo após os golpes de cotovelo. Ela caso acorde e, rápida com a chaleira, perdesse ele o sono servido, volta a roncar.
Acostumara-se com Dedicada, difusa na malha do dia-a-dia tecido de certezas. Pasta de dentes à esquerda, no armário, ao alcance sonolento da mão. Guarda-chuva na chapeleira chapéu no cabideiro. Chinela ao pé da cama, ao lado do urinol. Dedicada para o necessário.
Se ronda a crise, o cotidiano nas costumeiras acalma-se.
Tome chá.
Cinema aos sábados, no Centro Velho, para onde os levavam os calmos pés.
Pelo Chá.
Viaduto de orgulho cidadão. Dele olha o perfil metálico do Santa Ifigênia lindo e necessário caminho inglês a ligar o velho ao novo, os Campos Elísios dos palacetes ricos e assobradados.
Deliciosa noite fresca, dizia ela na ida, os olhos no firmamento, onde reinam silêncios do futuro.
Filme lindo um pouco triste dizia ela, emocionado olhar no vago firmamento onde reina o silêncio das telas e fátuo-fogueiam Ator Atriz aos beijos de lábios fechados.
Charrete, na volta, as ferraduras faíscam nas pedras.
Abastecido de sonhos, o Dono trocava-se para deitar, os olhos dela cândidos baixavam-se ao peso dele sentando-se na cama, os pés soltos dos chinelos, suspira apaga a lamparina deita suspira. Mas sempre demora um pouco para começar. Devagar as mãos pelos quentes das próprias pernas. Nunca dei nome para o meu querido, agora na palma da mão, pensa com seus pêlos. Os meninos amigos de quintais e baixadas do Itororó, batizavam nomes de zézinhos e joões aos queridos seus, meu querido jamais recebeu nome algum. Meu Querido tem real grandeza. Mas se aprecia o tamanho, desgosta-o a firmeza: acreditava melhor desempenho em passadas ocasiões mas, enevoada lembrança, confundida com a ida ao lupanar na aurora da vida juvenil carregado de medo e, quase no colo da experimentada dama dadeira, ser levado para o quarto escuro de perfume difuso e mofo intenso, cândida oferecido corpo em quenturas abertas à saciedade, enorme prazer e inesperada gonorréia. Sulfa e muito medo levaram-no curado e quase virgem ao casamento. Quiçá a firmeza em seguidos anos de casamento emurcheceu-se no sagrado de todo santo dia e, hoje, sobra pele na verga pressentida no cinema ao ver a luz bailar na tela a loira em trajos de fatal vampira curvar-se à pressão do astro valentino. Pronto! o Meu Querido. Mas Dedicada dorme e, contornados roncos, para ela voltado o corpo de preguiça, acorda-a com pequenos beijos.
Aos sábados, Dono e Meu Querido dormem bem. Leves carícias, beijos de lábios apertados.
Nem tão bem dormir nas noites dos domingos. Segunda, saberá Deus o que vem lá.
Aurora consumada, a porta de aço enrola-se cilíndrica mas, hoje, a segunda-feira não foi igual às outras. Nem a vida.
Segundas de manhã, quem entra rápido olha, rápido sai.
Amortecido tempo.
Atrás da Registradora um suspiro; outro no balcão. Ressoados no vazio.
O Balconista, olhos semicerrados, redobra fazendas no tampo de peroba. Deliciado desliza sobre elas a palma das mãos e, ao ritmo cortado sucedem-se a cócega da renda, a finura da seda, a maciez do algodão. Suspira. Pedaços de melodia recortam-se por entre a electrostática do rádio; o habitual.
Locutor de grossa voz dá o prefixo das ondas longas em megahertz.
A válvula cheira o tango em bandoneon, romântico comparsa da estática atmosférica, chia o canto em baritonado tom.
Entra a freguesa dos tostões: Dois botões, de diferentes tons. Grampos pretos meia dúzia, nada mais além de conversar: sem ter com quem sai.
Um solavanco, tilinta o sacolejo.
Pausa.
Aberta a porta de vidro para nova vida.
O tédio da Segunda finda.
Ela entra.
Não me deu Deus todo o tempo do mundo, nem me impediu de deliciar novas vistas.
O linho branco da saia roda riscas, o ar remoinha-se espiral e o perfume junto.
Sorridente vem.
O Dono, por trás da Registradora, meus pés encharcam-se prisioneiros dos sapatos entre cheiros envelhecidos grudam-se os dedos, o intestino ruida ressôos pelas prateleiras, dois redondos de suor no covo dos braços, vem para mim sorridente vermelho a boca linda, gagueio vago bons-dias perpassado de hálito ruim, da Registradora para trás do Balcão, lento vai, o chão não ruir o assoalho não ranger sob o couro ressequido de meus malpassos, tomei meu banho matinal lembro-me bem mas as ceroulas com certeza não troquei. Ou trocou? Trocou, como todos os dias por dedicação sua mulher não faz menos, e as meias brancas em liga esticadas, perfumado talco, glostorados cabelos nem tanto negros nem tanto gris.
Solícito servidor, o Dono atrás do balcão os grudados quadris, as mãos percorrem abertas da renda à seda, os olhos fecham dentro deles o sorriso vermelho cílios lindos, o enchimento dos ombros os vazios da blusa, escorrem lisos cabelos em pontas de permanentes ondas, o colar de bolas brancas roçando a pinta na curva redonda do seio fonte de perfumes.
Anna, dois enes.
Anna Ennes?
Olhos nos olhos ardem a repentina mútua paixão.
Os botões de madrepérola sob a pressão das unhas esmaltadas deixam ver mais que a pinta permitida, além da curva redondos e perfumados, macios nas mãos os lábios encontram delicados o arfar oferecido da carne feito verbo amar.
A loja fecha para almoço: assim que Anna Ennes a cada dia volta, por benevolência de Deus, pão de minha vida, Aurora Minha com Crepúsculo marcado.
Deu férias para o Balconista, única desde empregado. Três meses consecutivos. Daria outros trimestres, daria muitos mais. Não fosse esse o tempo exíguo que Deus lhe permitiu ser feliz.
E um santuário s´erige na loja profana. De um acanhado quarto até então sem serventia que ser despejo de caixotes de papelão escada quebrada torto balcão desusada escrivaninha registradora antiga, muito mofo e aranhol sem janela e caiado tem uma porta aberta agora para o amor. Entre beijos aos poucos pelos dois retocado, permanece intacto o quarto do desejo como Anna Ennes o deixou, quando se fez crepúsculo certo a inesperada aurora.
Um vaso azul, flores de organdi verde e rosa em arame armado ramilhete. Oferenda para a Senhora da Conceição, a proteger-nos de distraída concepção. Do oratório lamparina derrama vermelhos, pendente do céu de crépon.
Tenda árabe, dos cortes de tecido desfraldados de cima abaixo, entrecruzados de parede a parede amontoam-se qual almofadas sobre o balcão, sedas do rosa ao maravilha, o calor da casimira o frescor do cetim, rendas emolduram de flores os beijos e na pele tatuam asperezas à espera de carinhos, chita chitão e algodoim aparam os líquidos do amor.
Um espelho. Toalha. Bacia. Uma cama patente, rearrumadas molas de rangentes alegrias, de solteiro cabem os dois. O rádio é contraponto, à música sublinha o ranger compassado das molas, cantores fazem duo com o sax, e o cheiro quente da válvula retoca os odores do amor. Mais seria desnecessário, o tamanho é do céu. A eternidade vivida a cada momento, o pêndulo é foice a somar inverso os minutos dos contados Três Meses, prazo fixo pela benevolência de Deus.
Se Anna pouco fala, os olhos em branco e preto a carvão acentuado, expressivos lêem o escuro de minha alma.
Encontros mudos, poesia onde as rimas se beijam o ritmo carícias em métricas desiguais.
Dedicada entende o marido distante os pensamentos colados na guerra dos mundos, de manhã a Luz o encontra entre os canteiros do Jardim a correr que faz bem para o coração, o peito robusto o porte ereto, as maçãs coradas os olhos acesos perdidos entre as árvores, a moral mantida apesar da Crise, ruína dos desavisados.
Sábados sem cinema. Almoços não mais. Chega tarde para o jantar. Dedicado, aguarda-o paciente chá. Só estranha não ter ele perdido o sono, mas Dedicada sabe, a insônia chegará o mais tardar. É assim para um comerciante: não apenas entre trincheiras as baixas ocorrem. A insônia virá; se a insônia não veio já.
A noite que passou acordado foi em Santos. Anna Ennes, voluntária da Cruz Vermelha. Chamam-na os ferimentos de Guerra em Áfricas distantes. Nunca mentiu permanência eterna: eterno só o amor que a você devoto de coração; desde o primeiro dia sabia a data de minha partida em navio americano; e nos primeiros beijos entre lágrimas esse foi o sal de nosso amor. Amor com começo e fim. Intenso e sem promessa. Sem outro crédito além da paixão, nascida e reforçada entre beijos essa paixão encurtou os três meses que pareciam tão longe de um dia chegar.
Deus dá. Deu, tirará.
A dor da partida, o preço a perder de vista.
Descem a Serra e pensa quão difícil seria subir quando outrora não existia o Caminho do Mar.
Cais. Os estivadores, os músculos parados, esperam os Mercantes que não atracam. Nos tempos modernos, a moderna pobreza. Outra cara, na fome a mesma dor. Sorria, mas as lágrimas escorrem perdidas entre a compaixão e a despedida.
Pista de dança ao beiral das ondas.
Anna, à luz do azul mortiço de lâmpadas veladas, para sempre será linda assim, dolorosa despedida.
Pouco falta para a aurora subir em ramilhetes de maravilhas e rosas.
Hálito perfumado de rhum.
Tangos em compasso de adeus. Garçon de pés machucados no bico fino e punho ao peso de copos e garrafas, a cintura ágil nos desvios dos casais a dançar, corações trespassados.
Rosto colado em redondo suor, mãos entrededos enlaçadas.
Amanhece entristecido azul. A luz guilhotina da noite o dia. O coração parte em navio na imensidão do mar, a Serra, quão difícil subir levando no peito a massa negra onde bate a solidão.
Chá.
E muita dedicação.
Aos poucos, retoma e tece o todo-dia nunca mais igual.
Se retornou a alegria e o tilintar do troco, aos sábados fitas de Guerra, e tudo reaparecia entretecido nas malhas do sempre igual, por benevolência de Deus jamais perdeu, Meu Querido, a Firmeza reconquistada, para gosto de Dedicada, o Abusão.
Toma chá.

Arquivo 03 de Conto Romances
Paulino Tarraf
Data 30/09/2007

Sobre a versão de 24/07/2007
Sobre a Versão de 03/06/2006 paulinotarraf
Sobre a Versão de 07/12/2004
Original_12/06/1993

04 São José, das botas

Conto Romances Arquivo 04


São José, das botas


Cidade.
Os bairros, ela no centro. Os bairros têm nome, mas pouco indicam os nomes que têm. Dito um de Boa Vista, infere-se de boa vista fora em tempos outros; quiçá?, descortinava beleza de encher os olhos, quando uma colina defronte a outra não se entediava na monotonia do branco sujo de casas caiadas e quintais de chão desnudo.
Mas é de Cidade apelidado o centro. E por Cidade atende desde quando povoado crescia cidadã e dos sítios vizinhos lá longe se vinham às compras, aos ladridos os cães voam soltos os quero-queros rasantes em barulhento ataque como se guardicães fossem dos pastos separados por porteira, o carril marcado na areia pelas carroças os bois pesados adiante, excitados na vinda os homens no lombo cansado do cavalo na volta sonolentos da pinga.
É Cidade. Já foi selva. Relvas cercam-na, agora.
São córregos os rios caudais d´outrora.
Só dentro dos sonhos de Amandio tanta água em tal fluir, dentro dos rios as pirogas a pendepender dentro delas o bugre rema desconhecido o porvir a sonhar. Nos sonhos de Amandio esse rio obedece o apelido cristão de Piedade deslembrado o verdadeiro nome esvanecido com o derradeiro suspiro por onde a alma pagã do último bugre soltou-se, empós o bacamarte descarregar nele o chumbo da conquista. Vive ainda o Piedade, perdido entre os outros que a custo se arrastam córregos colados nas margens, carregados de detritos.
Boa Vista e Cidade, uma colina olha outra e se de boa vista foram, magica Amandio fossem copadas floridas, ondulantes coqueiros, entrelaçadas trepadeiras nas árvores esguias que se via: separam-nas um córrego Heborá, leito de água e mel. Heborá, pelo nome tapuia, testemunha ter ali existido a alegria dos bugres, deduz Amandio piscando os olhos descolorido azul.
Lera em almanaque que falar Heborá significa dizer: Mel cabaú pinga do oco dos troncos, saburá de gosto doce amarelo na cor, não duvidava o bugre ter jataí entre as grossas cascas, se tem urucu se tem guarupu tem mel se tem abelha de tarjas pretas riscado de ouro nas patas cabeça e peito; escorre o mel feito regato nascente para o rio a circundar a colina onde menina crescia a cidade. Assim nos sonhos de Amandio era caudaloso o rio e hidromel divino em seu cântaro corria, Heborá escansão.
Ladeando a colina, no oposto do Heborá, cópia d'aguas é Canela um rio que se chama assim de batismo pelo cheiro talvez pela cor quem sabe o gosto.
E mesopotâmica ela nasceu.
Despejam-se vassalos Canela e Heborá num rio maior, que nome não tem tanto é vária a cor se chove muito chamam-no Pardo, Claro em manhãs d'estio a ele se referem, Azul refletido o céu das tardes Verde tinto espelho das matas se dele se enamora um poeta: Preto no mor das vezes, esta sua sina. Saberá Deus? escandescido pelo turbilhão dos peixes rio grande nomeavam-no reverentes os tapuias na inocência de acreditá-lo eterno.
Paralelo a esse rio preto tem a Boa Vista uma Boiadeira.
Boiadeira rua, tráfego de gado a mudar de dono, ou de vida em matadouro. Qual as outras ruas é descalça a boiadeira, terra dura leito de areia. Sempre verão, tardes soltas, o melhor da chuva são as ruas viradas em rios que dão pé. Nas testeiras das casas cascatas a despencar, no enxurro da chuva finda navegam barcos de papel. Diques de gravetos e pedras, barragem d´água barrenta.
Ali na Boiadeira os pés descalços do Meninico conheceram areia quente, estrepe agudo, caco de vidro; áspero muro farpas da cerca, varar vigilância tomar de assalto os quintais; casca grossa do tronco da mangueira arcada de ouro doce de chupar. A pedrada derrubadas despencadas de madura, amarelas de sol caídas verdes de vez, mangas delícia sem par mesmo se agraz.
As ruas desembocam nos rios.
Mas Meninico não foi tão longe quanto curioso se impelia. Assim, missa na Aparecida da Boa Vista o mais remoto sítio visitado. Do oriente seus pais vieram de trem.
Em casa os filhos são a língua viva da mãe. Os ouvidos, quando para a rua vão, voltam carregados de palavras novas. Há sempre um verbo complicado de conjugar; futuros complicam-se no passado irregular. E pelos quarteirões quadrados de casas esparsas de porta em porta vai pelas mãos da mãe, sabonetes espelhos e pentes ramonas e alfinetes, a vender miúdos e garantir a mesa.
No almoço não falta a coalhada mansa da vaca criada em cercado, azeitonas pretas d'Hespanha, refrescantes pepinos perfumados de verde hortelã, doce alface de mistura ao agre almeirão, vermelhos tomates da horta em quintal não faltam.
Hoje o pai não almoçará:
O Pai. Os pés pelo sertão, atalhados plantios cambaleia em pinguelas sendas torcidas na mata a mala nas costas fere a carne dos ombros o couro cru, males de uma viagem sem fim de ofertar de sua mala as miudezas abrandamentos da vida dura do colono italiano que, plantado na terra prometida de um viver melhor, roça sem fim. Solitárias manhãs, tardes de ensolarada indecisão, fecha-se o céu chuvas em anteparos taperas de beira-estrada, abertas nuvens, os pés na lama onde antes areão e pó. Na mala o futuro. A mala, dentro os miúdos, é toda riqueza resumida. Giro para o futuro arruinado: Se molha. Se desbota. Se roubada for.
Se, negror que interrompe o sono, irrompem sonhos pesados de interrogações atiradas na noite de denso horror: Se?:
Minha Terra, que será dos meus!
Meus Pais, que será de mim!
Lá no oriente pesava a lavoura. A mala pesa aqui. Neve ou areia, lá ou aqui, o mesmo futuro deserto e frio.
Terra de meus Filhos, que será de nós!
Nas noites árabes mil e um desencantos, quando não o vergão da guerra os gafanhotos a devorar os sonhos, tão rapinas gafanhotos de enfurecida fome furam o chão e desmiolam as batatas plantio em duro labor, livre o solo das pedras sangrantes unhas, o arado na terra a mulher puxa feito mula o homem empurra feitor, num raio de tempo o inseto coriácea guerra devasta. Aqui, sem o lavor da língua não brilham os oásis na sonhada promissão. Se?
Lhes, a mala nas costas, estradas sem fim. Dia inteiro sem água de beber, deserto feito pelo medo de nos regatos venenosa ser apesar do prometido frescor entre pedras corredeira, repulsiva nos casebres por infecta da pobreza suja apesar de gentil oferta em pote aberto retida; dias sem comer até s´achegasse nas terras dos Comar, alemães de origem, a limpeza com feição de saúde recupera nele a confiança. Não falassem a língua de minha terra, entendiam ao menos meus sinais: palhas no paiol para dormir, água de filtro em caneca de lata, banana e um pedaço de pão. No paiol espigas de milho, grãos nem tão duros assim.
Lhes, imigrante do padecer. Lá e aqui, o mesmo aperto na vida, não há como fugir apenas trocar o lugar da dor a se enfrentar.
Primeiro o mar em navio negroreiro porão onde feito gado de segunda classe convivem na disputa por lugar, alfândega e quarentena na migração, rechaçam-nos olhares oblíquos como se a peste aportassem ratos, o linguajar estranho fere os ouvidos sem tradução; depois a longa subida de trem estrada de ferro a fugir do mar a íngreme serra e se há belezas floridas entre os trilhos e entre escarpadas pedras o azul do céu nas verdes águas era aflito o choro da filha era desmedido o medo da chegada era o negror senhor de suas pálpebras a invadir a alma como se?
O trem chega na estação sem que a viagem chegue ao fim. Baldeação. Mar de gente, perdidos sem saber ler, ouvintes surdos falar sem se fazerem compreender, no vagão sentados resta o desamparo de qual estrada aguarda-os no fim, se fim houver algum.
Os trilhos de ferro agora buscam no planalto o sertão, novidade e terror, se há surpresa na imensa planura onde vales ondulam nuvens ondulam os trilhos nas curvas o apito de ondulados sons, chacoalham os vagões e o trem fumaça, na fumaça faísca, queima a faísca na pele a fumaça arde as narinas; e fede. Minha Terra tão longe meus irmãos e meus pais nas montanhas nevadas entre cedros sagrados, o cansaço e o sono dormido acordado sonha males negrumes sem fim. Se.
Lhes, o Pai. Quando volta do sertão, é o silêncio dos filhos. Até o caçula se chora, tuge. Engatinha miúdo, os olhos cheios de boiada, berrante e aboio mugidos e pó na rua descalça. Os meninos varam quintais, para longe da corda inquerideira da mala com que podem apanhar impedidos do solto brincar brigar xingar e de alegria gritar.
Dos filhos, um mais destravado. Nasceu de olhos abertos, respirou dos ares a vida oferecida sem chorar, do peito de amor o leite oferecido sem nunca chorar mamou. Jamais apanhou.
Suspensórios, duas alças num só botão preso ao cós, Meninico, a cabeça coberta os olhos vão em busca de novos trilhos nas estradas diferentes margens em novos rios, aprendiz de jamais esquecer, nas lembranças somar e mais aprender.
Arbatacho!
No chão o canivete aberto para a ferrugem.
Rabatacho!
Beirando o rio, hoje preto de águas pelo chumbo do céu, o mais longe que foram de casa. Meninico feliz; anônimos assentam os ferros prolongando a estrada de trilhos, e o rio, fendas para o sertão. Meus pais vieram do oriente, de trem.
Um canivete perdido no chão.
Todos os Meninos Vizinhos puseram no canivete os olhos, mas só dois puseram as mãos: Garnisé, o irmão mais velho de Meninico, e um menino qualquer de nome chamado Zinho. O Zinho qualquer dizia que era dele o canivete no chão. O Garnisé não abre a mão. Os dois de quatro, a quatro mãos, pares de olhos às dezenas sobre a rinha do Garnisé e qualquerZinho brigões.
Garnisé, teimoso, não solta a cobiçada prenda.
Larga!
A boca fechada em lábios finos, uns dentinhos, os olhos teimosos as mãos mais.
Larga! Grita o Zinho: Larga, turco rabatacho!
Meninico conhece esse irmão garnisé; apanha mas não pede perdão, perde mas não cede: turro fungando, ele e o canivete um só.
Larga! Larga, roubatacho, turco preto ladrão!
Meninico conhecendo esse irmão garnisé prepara-se para o pior.
Garnisé, a mão abre do canivete e fecha em soco direto no queixo do Vizinho.
ZinhoQualquer armado de ódio gira o braço e o canivete desce.
Rápido salto, Meninico permeio. O canivete ferrugem vem. Um rasgão na camisa ferido peito sangra Meninico. Mas não há dor que o atalhe. Arranca do Zinho o canivete ferrugem de sangue marcado. Um soco e um chute, soco em cima chute em baixo, um urro ganido. Um calço rasteiro e Zinho vai ao chão; tomba sobre ele o Meninico, o canivete a prumo pronto para matar. Pendepende o canivete suspenso. Arranca-se na carreira o Meninico, o canivete nas mãos, os choros deixados para trás.
A rua desemboca no rio. Dentro jacarés. São deles as couraças fingidos troncos. Cobras, delas os rabos finos simulam-se raízes ribeirinhas. Bocas, não é remoinho de vento n'água a gula aberta do dragão. Franças d'árvores no espelho invertidas, na verdade entes das profundas soltas vastas cabeleiras: eis que o Heborá só é rio amigo dos bugres pelo homem abatidos.
Eu, assassim. Matei o Zinho, a camisa dele manchados de sangue ela e o canivete.
Corre margeando o Heborá, e uma ponte sobre o rio aparecida liga a Boa Vista à Cidade; e ele à liberdade.
Ponte e Cidade desconhecidas. A colina aponta para o céu. As profundas é lugar de assassim. Dor no peito, inchado de sangue o coração, é assim assim que se morre se uma faca fura de fora. Não volto para casa, conheço meu pai e a corda que me castigará pecador.
Meninico apalpa o peito apalpa o rasgo a doer e alivia na alma a dor que desnecessária sente. O sangue na camisa de Zinho é meu sangue vertido do peito que, ferida a carne, dela derramou-se nódoa no derrotado inimigo. Inocente. Não peco, se defensor do irmão. Aguarda-me o céu, campos elísios do guerreiro no colo da Virgem repousar dos combates.
Resta meu pai: é deixar o tempo correr, chego manso e peço perdão paizinho. O Garnisé, esse meu irmão teima e apanha, apanha e teima e agora tanto apanha que sobre ele se atira a mãe para desviar da corda a carne do filho teimoso e sobra para ela a dor do vergão. Não volto já.
No alto da colina a igreja em construção. Encantado Meninico vai.
Anônimos vão em direção à Praça da Matriz para a igreja em construção de orago São José; serventes de pedreiro saídos da roça opilados caminham amarelões, fortes apesar de empambados. descalços brim desbotado remendos de per si rasgados, enxadas nos ombros não vão os Anônimos raspar o capim sequer dos plantios enfrutados proceder colheita mas, amassado barro medido ao prumo, tijolo a tijolo em Catedral erguem a nova igreja. Mais encantado ficou Meninico que encantado veio:
Eis a Cidade, paralelepípedo no leito das ruas ladrilhadas as testeiras das casas niveladas, meada de fios equilibra os postes de luz e as lojas em fila expõem-se comerciais, a buzina passa e o carro se aproxima, o cavalo relincha o burro empaca. Na janela olha a mulher envelhecida. Um pedinte na calçada esmola.
Os tecidos expostos sobre suportes peças de linhos e cortes de casimiras desfraldados porta afora pelo vento, bandeiras do comércio. Em cabide, prego na parede, um guarda-pó e sob a gola lenços coloridos também ao vento saúdam os que pensativos passam. Ringe a polaina, olhos abotoados no peito dos sapatos, o senhor faz tripé na bengala. A senhora passa e o perfume fica. De comistão ao sopro da roupa cheirando nova nas prateleiras fixas. O bafo do caporal que passa fica. De comistão à queima da gasolina deliciosa. Ao ronco do motor o som dos saltos nos ladrilhos, nas pedras trisca a ferradura, vagas vozes no ar s´evolam.
O padre Damiano louva Jesus Cristo. Louvado seja, retribuído por Jaime farmacêutico, que surpreendido fica:
É sangue no rasgão da camisa desse meninico? pergunta agarrando-o pelos ombros, ao tentar fugir.
A farmácia é adocicada bala. De alcaçuz, diz Jaime ao dar-lhe uma dentre as pastilhas, confecção do aprendiz do farmacêutico.
Com aroma de vinícola entra renque pautado de sorriso claro os limpos padres vestidos pretos, allius post allium, seguindo Damiano. A tonsura repete-se brancura em nacarada gola e os dentes perfeita dentadura. Louvado seja Nosso Senhor, barítonas vozes ecoam corais de todas as partes: a farmácia uma nave laica. Iluminada do sol feito estilhaços tais vitrais os vidros variegados dentro cheiros cativos dos eméticos vermífugos emolientes e estípticos sob rótulos manuscritos em gótico antíquo, da janela a catedral pronta quase é estampa no tempo imóvel.
Ordenados tabuleiros, brancas e pretas tábulas, prontos para o jogo das damas os padres na calorenta manhã. A cada gesto desprende-se o odor de vinho de comistura ao adocicado alcaçuz; destampado o frasco embebe-se o ar do'spírito d'álcool e a mão do farmacêutico em lavabo d'assepsia pronta está para o sacrifício do Meninico. Gritar eu não grito que de nada adianta. Na branca nave o vozerio em rosário de risos clericais levanta-se do chumaço negror de batinas a comer as damas e no algodão um milagre de transformação d'água em pura rosa espuma oxígenogerada explica Jaime o farmacêutico, a mesma substância a lavar das feridas suas pestilências: isso pacifica a alma do Meninico.
Silêncio.
Graças damos ao Senhor:
Comidas as damas e as serviçais branca ou negra, comprazem-se os padres vestidos pretos, num pós-prândio sonambúlico, em olhar a catedral perfeita, sua torre ainda a meio céu erguida. Vista postal da farmácia. Pronta será nosso cartão de visita, repetem todos cidadãos.
Emocionado silêncio, a pouco e pouco preenchido pelas barítonas vozes elevando-se devagar com ridentes comentários que pronto, o altar-mor, aguarda em seu nicho o São José, orago. O farmacêutico, pincelando mercúrio cromo na ferida, quis saber por que não ocupa ainda o orago seu lugar honorífico. Argumenta Jaime: Amargou, o Casto Protetor, secular esquecimento em choça de bárbaro bugre no aguardo do resgate cristão. O luxo de um nicho, entre luzes fluorescentes flores de corolas lâmpadas de piscar colorido recebendo o resplendor do ostensório ao deixar sagrada a hóstia o recato do sacrário, seria condicente moradia.
A causa são as botas; sentenciam os padres em curta sermoa.
Já encomendamos uma linda imagem de serena beleza as vestimentas com bordas ourejadas em grega composta. O das Botas ficará na lateral direita sobre estrado de madeira, qual relíquia antiqua.
Meninico olha o peito, tinta em vermelho a ferida; de relance vê transpassada a face de dor do farmacêutico, que apela indagativo e indignado:
Pelas botas!
Não só. O todo merece reparos. Entoam coro coral os curas: em privado concílio decidimos, e decidido está: outra imagem ocupará o nicho mor, o das botas o lateral.
A ferida esquecida, o farmacêutico empunha parada no ar pinça feito lança na ponta chumaço vermelho de onde o mercúrio a prestes gotejar:
As botas, protetoras da cidade!; profere a boca pecada qual fruto seco, imbecil beiço em queda quase-cuspo chupado de volta, o céptico farmacêutico, a gota do mercúrio cai não cai.
Botas nada protegem, atalha padre Damiano, corifeu entre os coreutas. Erudito prossegue: são as botas um arranjo popular, gosto barroco de medievos artesãos. Se não vejamos:
Túnica curta, roupagem de carpinteiro, era esse o santo José da Idade Média, bastão recurvo no severo Gótico que se alindou de flores no Renascimento. Na fuga para o Egito trajos de viajor sobressaindo-se capa turbante esvoaçada ao vento ou chapéu de abas largas caídas em sombreado semblante, filho da preocupação. Botas, nunca.
Outrossim outros santos:
São Matias substitui Judas como discípulo de Jesus; vestido qual demais discípulos de pálio e túnica suas imagens se vestem. Nele difere pender de seu pescoço corda de enforcado, suplício de mártir que por vezes carrega nas mãos. Mas a partir de séculos dez e anos quinhentos mais, a Matias santo troca-se a corda por uma lança quando não por um cutelo. Nem nos protege a corda, nem lança ou cutelo protegem ninguém; sendo sim essas armas gosto do artesão. Nada implicativo com Matias.
Corifeu recita padre Damiano o nome de santos outros. Coristas os demais nomeiam, em responso, vestes adornos atributos, cada qual em diferentes alturas de som a duas vozes ou três por vez em cantochão à maneira de ladainha. Jaime farmacêutico escuta; da pinça o mercúrio goteja sanguíneo no ladrilho branco da farmácia feito capela:
São Benedito, franciscano siciliano filho d'escravos africanos, é marron o hábito, branco o cíngulo e, se flores na esquerda o artesão esculpe no lugar da cruz então será Benedito Santo das Flores a poesia que no altar veneramos nós.
Sanctus Benedictus, pai dos padres bentos, cruz peitoral sobre a cogula, u'a mão lança bendição d´outra pende o báculo abacial e, quer imberbe quer barba traga na face por variação, diversifica também o popular artífice esculpir junto dele um cálice com serpente entrelaçada ou um corvo prendendo pedaço de pão no bico calado. Atributos do Silêncio, Regra da Ordem, nada a ver com proteção.
Santo Elesbão, rei etíope. Significa Abençoado seu nome Elesbão no pais da Etiópia. Convertido, além de igrejas tantas em seu reino levantar, a Jerusalém envia sua Coroa embrechada de pedras variadas na espécie inúmeras cores elevado valor: eis porquê numa das mãos é uma igreja o atributo de freqüência maior em suas imagens. Rei sem coroa, exposta a tonsura circular.
Santa Bárbara, senhora dos raios, no batuque confundidos fanatismo e religião abstida fica a Igreja de manifestar-se. Mas a palma nas mãos, não é a palma e sim a santa quem dos raios nos livra da electrificação.
São Miguel, um demônio aos pés sujigado ou pesando das almas sua sujidade. Estátua ou estampa, nelas assim se configura: lança ou balança nas mãos, é a preciosidade do artesão quem dita. O Santo Núncio, anjo que é, as asas diferenciam-no de São Jorge, romanos os dois nas vestes guerreiras e São Jorge eqüinomontado, que tem a ver o cavalo com a Fé? Quem nos protege, São José ou as botas?
Grave pontifica Damiano: Vida de santo e santa paz em vida não se conjugam como caminho para Deus. Ensinam-nos os beatíficos que, para a felicidade perfeita no eterno, somente a dor é seguro guia.
Uma pincelada desatenta desenha no peito do Meninico uma chaga aberta a escorrer mercúrio que, enfático barroco, berra nas cores o martírio.
Coristas, os padres sopesam: nos sertões do tempo, época de intensa barbárie vem o conquistador, no seu comércio beduíno de bando armado com ferocidade mamaruca, pondo mataria abaixo sob calcar das botas, aos vencidos se prisioneiros não escravizam matam: o mamaruco sangue híbrido carrega n´alma ferocidades somadas.
Corifeu, Damiano pondera: e o bugre recém convertido, ou aceita o baptismo como penhor da Fé ou é lupina ira revestida de pele cordial a subverter com subtilezas os valores da superbíssima Madre amada Igreja.
E grave Damiano monodia, intercalados apartes dos outros padres, confirmando em baixo contínuo:
Além das botas, as feições. O artesão, que de São José talhou a imagem, talvez fosse um recém convertido bugre.
E o São José não só calça botas, atributo do conquistador, como marca o artesão o próprio rosto no ocre da pele nos malares pontudos na testa corcova no cabelo grosso lisa barba rala as origens de conquistado.
Corifeu e coristas: São José das Botas, misto de vencedor e vencido.
Corifeu: Merece o altar-mor, à altura da Cidade de civilização em grau elevado, merece a Cidade um São José de finas feições talhado, amarelo pálio de gregas pregas ombreando túnica em roxo desmaiado, e nas mãos o lírio da castidade nos braços o Menino filho seu por Santo Espírito gerado, ondulados cachos cabelo e barba, paternal sobriedade.
Ao São José das Botas, o museu de um altar ao lado.
Damos graças.
Quero ser aprendiz de farmácia. Se.
Apenas doeu a injeção. Meninico volta para casa, o irmão já terá apanhado, o pai mais calmo, se!
Atravessa o Heborá. As mãos nas traves da ponte. A seus pés corre a rabeira do tempo feito águas do rio. Não há trem para a coragem dos homens. A pé na mata intrincada de clareiras falsas em sonhos escuros, a coragem empurra os homens para dentro do horror. No Heborá mães brincavam com seus filhinhos, desatentas ao perigo do iminente ataque. Sem piedade. Pólvora contra curabi, a frechervada.
Resta um rio onde despejam os afluentes suas águas variegadas, se chove muito Pardo, Claro em manhãs d'estio, Azul refletido o céu das tardes, Verde tinto espelho das matas, Preto no mor das vezes, Rio Vermelho agora pelo cruor derramado; e numa choça recém talhado resta um São José, testemunha dos sonhos comidos pelo Negror da Noite, onde aguarda envergonhado o museu de amanhã. Se.
Depressa meu filho, a mãe ainda não preocupada, toma banho, troca a roupa, calça as botas. Você vai com seu pai, às compras, na Capital.
A mão acarinha a chaga:
Você menino de valor, disse a mãe, você meus olhos.
O trem rumo ao oriente.
Rápida a paisagem solta-se.


Arquivo número 004 de Conto Romances
Paulino Tarraf


Versão de 17/08/2007 sobre Versão de 01/06/1999

05 Olhos nas Penas


Conto Romances Arquivo 05


Olhos nas Penas


Os pés, lamelares imbricam-se répteis escamas amarelas feito ouro opaco guardadas por espora córnea penetrante para horrendo corte, vacilam passos suposto donaire, lenta cautela é oval o corpo empenado, e majestosa a cauda abertas plumas de muitos olhos vigilantes da inveja que o vistoso de seu porte pavão engendrará. Tiara repete da cauda o ornato. Solene vira-se de novo em círculo passeia a formosura pelo quintal.
Triste tarde de Domingo.
Raphael de nascença sensível. Pretendia Joanna dos Anjos, sua mãe, balizá-lo Rivail ou Denizard, Álvaro quiçá imposto pelo claro da pele, Raphael nome archanjo ficou. Contempla a beleza pavão passageira: solene formosura altivo alternar dos passos, repente se vira, e o leque de olhos passeia, falsa indiferença, pelo arroubo que na cena aberto causa.
Alberga-se Raphael da calma vesperal sob caramanchel de madressilvas, as sombras ao balanceio da brisa. Assovio fininho alinha em colcheias o Capriccio Italiano nota por nota. Inexistentes senhos amores. Cai o seu desemparceirado amor no vão dessa triste domingueira.
Raphael, ourado Álvaro, sensível Rivail, escuta. O som sutil gemer e sorver, o jabuticabal suscita e Raphael quase Denizard escuta; a mais ninguém fere o som do pomar fluente.
As famílias, tantas, em busca da paz do recanto por eles devorada. Ruidosa molecada. Desordenada falação.
As jabuticabeiras, centenas delas crespas de vesículas pretas seivassugas a sorver sem parar os troncos gemidos de dor abafados pelos gritos dos moleques índios soltos na pradaria do quintal, em guerra machadinha de graveto na mão galopadas em pêlo de cavalos de pau, contra eles mocinhos valerosos cavaleiros, revólveres espoucam balas sem fim nem som feito cinematographia, bando tormento nas mães cuidosas de se não machucarem os filhos andam à roda aflitas, tumefacto pescoço estendido feito peru a gorgulhar vermelhidões. Raphael aguça o espírito. Afina cordas n'alma em busca do ulular transido de aléns: das bocas o chuchurreio sem parar o tronco a gemer.
: Aqui.
Entra a família.
: Aqui; disse a Mãe aos filhos.
O Pai vem lentos passos, afastado como a sonhar. Ao lado dele o filho dito teimoso garnisé distraído e o outro filho Meninico, mal chega, fixo olhar nos olhos emparelhados do Pavão na cauda e uma pena promete soltar-se.
: Aqui, a chacra dos Bertazzos; diz a Mãe rindo-se do que em árabe chacra pomar não quer dizer. Voz cristalina, dela as luzes se não entende o que diz é poesia o som. O bebê caçula ao colo, a mais velha com a irmã menor, de lado atarracada na cintura.
Não escapa de Raphael aura de evidente bravura iridescente na mulher que chega. Triste tarde de Domingo, na chácara Raphael à sombra das madressilvas, de frente ao jabuticabal, o pavão de alegres penas, contempla Raphael nas famílias que chegam a própria solidão.
Os Domingos, nas folhinhas marcados números em vermelho, domingos dos passeios depois do almoço de macarrão e carne, alface repolho e hortelã na salada de pão azeite e vinagre, o domingo é dia inteiro de vermelha alegria: rumo à chacra dos Bertazzos. Terão muito de andar, acostumados embora.
Trancou a porta? Mil trancas houvesse.
Sumidos da vista na virada da rua descida. Ninguém olha para trás.
Às caladas uma mulher. Posta-se frente à casa. Nada podem trancas de madeira contra a maldade. A mão levantada contra o céu reza maldições. Lança em cruz desbenedita terrorões de solos mortos sobre o telhado, portas e laterais. Um punhado do chão aos céus, pelas abominações. Da esquerda para a direita, pelas tinhas e podridões. Amém sobre a porta, clama miséria por gerações. Retira-se, a casa trancada. De hoje a sete dias aguardará calada.
O Pai na frente os outros atrás, chapéu na cabeça o sol por nuvem negra em cruz reversa coberto, descem até findar a Boiadeira, atravessa o rio ponte quase pinguela de muitos troncos e varetas amarradas de corda, muito mato ao derredor. Onde quem sabe a guabiroba é mais perto que as jabuticabas, de graça, apanho no pé e dou para todos teima o Garnizé. Anda moleque, a voz tremenda do Pai. Um tapa armado perde-se no ar.
Em corredeira mansa o rio, preto fluir, já fluiu verdes águas, pardo, claro azul.
Safanão certeiro em Teimoso por chacoalhar-se na pinguela e Meninico a salvo de apanhar, apesar de autor da brincadeira, mantida a prudente distância como sempre escapa dos tapas da corda do castigo.
Além da Adamasceno, colina gêmea da Boa Vista, subida inteira é a longe chácara das maduras jabuticabas, os donos Bertazzos são ricos de dinheiro embaixo dos colchões.
Na subida o Pai na frente, a Mãe logo atrás. Apressa o filho distraído. Teimoso ficaria por ali no mato enfiado à cata de guabiroba, não importa se azedas chupar quantas queira no pé.
Ninguém olha para trás. Da subida vê-se a torre da Catedral, na Cidade, tijolo a tijolo buscar o céu.
: Aqui, chegamos; diz a Mãe, o melhor vestido preto de sair, tinha bordado em folha de uva de vinho colorida, as miçangas brilhantes sobre o colo que há mais de anos cinco amamenta sem parar, filho filhos após.
Aura notável, não se cansa Raphael de bendizer. Os olhos dela passeiam maravilhados pela multidão de gentes a falar, todos ao mesmo tempo, a língua que mal compreende. Dá ao caçula o peito retirado debaixo da folha de uva com a experiente mão.
Os Bertazzos quando podem comem a própria carne, as unhas ao menos, pensa Raphael demorar esta chácara longínqua à caridade: Jabuticabas só em canecas, sem permissão de catar no pé; insistência é teima burra, não adianta tentar.
A filha mais velha, seu nome Querida, na fila canecas na mão descansa as costas de carregar a irmã menor, começando andar.
As confinadas jabuticabeiras, arame rico em farpas sem vãos. Jabuticabas, a família Bertazzo vende! murchem nos pés para alegria dos pássaros, apodreçam no chão para tristezas dos pobres: nem comem: nem dão.
Pretas brilham no tronco, se frutas para uns, martirizantes seivassugas sussurros de dor feridos n’alma de Raphael; as folhas ao vento sinfonia universal.
Meninico, onde vai o Pavão e a pena quase a soltar-se enamorado olho, lento caminha ele atrás. E atrás segue polícia um dos Bertazzos, velho andrajo vestido disfarça andar. Cada pena vale fortuna, na contabilidade da penúria renovo da usura. Pensa Raphael.
Sentada à sombra do caramanchel de madressilvas perfumado, a Mãe dá-se à boca rósea do filho menor. Tenta e Raphael não entende a longa explicação:
Vieram de longe, M’lhes e M’lia nossos nomes, viemos do além mar de navio, de trem subiram a serra e da Capital muitas horas a mais viajores, M’lhes mascate as malas nas costas meses pelas roças, quando escasso o dinar vendo bugigangas de porta em porta para o comer do dia-a-dia. Raphael interessa-se em comprar.
Arame farpas alfinetam brilhos ao sol e a cerca, e nela Prohibido Passar veta a delícia de arrancar do pé a jabuticaba preta. Lamentam Meninico e Garnisé dito teimoso e distraído, para quem delícias são as guabirobas azedas doces veludos carícias no céu da boca ao estalo da casca.
Quieto Meninico estuda na cerca uma fenda por onde o paraíso inicia seu chão. Mas contrasta a cerca sólido tapigo, com a casa tapera desabrigo. Demorada em sovinice construída. A miséria reforma rachaduras com amarradas de arame em estacas apoiadas paredes, telhado cobertos por retalhos de zinco e lata reinam os vãos, as janelas onde vidros agora papelão, a porta tábuas remendam tábuas, dentro quem viu enojou-se dos catres palha sobre estrado ensebados lençóis outrora vestidos e camisas alinhavados, bambos caixotes mesa ou cadeiras conforme convém, almoço sobra para o jantar em latão feito prato ou caneca, o cheiro condiz percevejos e as galinhas soltas pela sala além das lêndeas piolhos e o solo em chão batido por ali defecam cães urinam gatos. Rebrilha renovada cerca ao sol, no portão é fresca a tinta onde aguarde em fila escreve a sanha dos Bertazzos para quem usura precede usar.
Meninico não desiste, um olho na cerca outro no Pavão; nele meninico grudados os velhos olhos bertazzos andrajos vestidos. E Meninico doce, pensa alto que um pequeno puxão ajuda a cair o que a natureza vai daqui a pouco derrubar. Moleque, nem pensar; esfarrapada e rouca sentencia Velha Voz: se você arranca a pluma do Pavão ele morre de penar. Quando de uma se desfaz é que nova pronta já desponta como o definitivo ao dente de leite ocupa o lugar.
Então espero cair, de pronto pensa e cala o Meninico, pois já sabe que dessa Rouca Voz apenas senões há por vir.
Num quérulo sibilam as folhas das jabuticabeiras. Só Raphael escuta, e aura suave por elas não perpassa, antes circunda-as e alta veste as franças do arvoredo maior de ouro fluido rubi pó de prata e minutas vibrações assoviam de volta o Capriccio. Jabuticabal ninho da usura. Dizem dele esconder no antro de seu putrefeito solo em arca de flandres o dinheiro alimentado da miséria dos Bertazzos. E com o quérulo desprende-se saturno miasma resíduo das lágrimas que dos troncos deslizam, e maceradas no chão molhado as frutas rompidas cascas nos pisões são olhos que de dentro saltam.
Alheio vozerio. Dos moços em namorisco as moças rubejas, ronda o amor de sinais trocados rápido piscar lábios mordiscados e dedos mal se tocam consentidos. Disfarça Raphael o solitário coração a escutar das folhas o murmurejo gaio não fosse o baixo contínuo flente dos espoliados troncos: val lacrimal.
Alguém, à victrola manivela, amante da música faz descer das nuvens novos sons e anjos negros sopram trombetas convites para os braços aos céus elevarem-se em profana prece, clarins sinuosos serpenteiam cinturas e os tambores continuam-se nos pés, em tuti a orquestra ataca sincopado para o mundo bailar o jazz.
Névoa de pó na estrada rósea, reluzente carro a céu aberto a buzina solta os gritos de alegria, e lindas moças frágeis melindres, descem os joelhos à mostra, e numa delas a blusa cobre reta os seios delicadas saliências entre elas o colar falsas pérolas é jóia verdadeira a balouçar:
Olga.
Cessam os sons. Que: as crianças que até agora brincavam a cabra cega, brincam ainda. As bocas melindrosas abrem-se para sorriso de riso nenhum. Sem ruídos no cascalho arranhado das botinas. Os meninos, em doida cavalaria, seus revólveres soltam fumaça muda de tiros; e tombam os índios silenciosa morte para horror das mães as camisas sujas e os lábios movem veemente repreensão como os gestos o cenho de carregada ira cessados sons; para Raphael porquê:
Olga.
Scenacinema. Paralisados atos. Na tela da tarde, somente ela, calorosa, move-se estrela vespertina.
Olga.
Abre-se o riso, brilho e aragem, acena delicada mão. Perfumada boca. Reveste a pele finíssimo vapor. Talvez dela se desprendesse a aura, que linda nas árvores mais altas iluminadas cores sussurra para Raphael ser Olga casta carne alma espelho da sua, sendas solidões.
Gaios rapazes três, solícitos palheta na mão acorrem à sua chegada, e prontos para a corte esmerado servir doces sorrisos, nada falte à beleza que chega, mas o Pavão!
Meninico aguarda o presente do Paraíso em Plumas, mil olhos em multicor aberto leque. E os olhos das penas devolvem iridescentes os olhares maravilhados das gentes. Bertazzo de guarda. Airoso move-se avis rara na passadeira do fascínio.
: Ave da Fortuna; Olga encantada ouve Raphael. Aprendiz de alfaiate logo terá oficina própria; pois macchina das mais modernas que o século produziu, já tem. Fortuna é futuro construído de boas ações.
: Pavão de remoto oriente o uiramembi de mato grosso é pavó longínqua cópia.
Brilha esverdeado capuz feito saio a cair penugem pescoço abaixo. Nuança violeta. Laivos pretos. Lento move coroada cabeça a penugem feito saio leve roda: íris em arco acaricia a vista. Meninico no compasso de seu cadenciado andar. Vigilante Bertazzo vê sua propriedade ameaçada.
: Useiros e vezeiros da usura, diz Raphael.
A velha Bertazzo guardiã da cerca. Compradores em fila. Os filhos dela vão e voltam do jabuticabal, canecas cheias canecas vazias, os dedos ressequidos da velha conferem os tostões, soltos na caneca um por um a tilintar, a fala do ouro calmo som aninhado nas cavernas do ouvido.
Diz Raphael. Olga encantada: Jabuticabas a canecas, contadas cinqüentas ou quantas caibam sem chorar pelas bordas. Bertazzo pai Bertazzo mãe, Bertazzo um filho duas filhas Bertazzo. Paridos na mesma penúria. Vestidos em trapo com trapos remendados. Velho e velha entre si alinhavados os filhos envilecidos. Sua alma sua palma. Encarquilhada pele, pálpebras abertas de esgares vígeis, os lábios contam recontam passam perpassam a mealha de tostões, moedas desgrudadas por infindas matemáticas mussitadas. Ricos, tanto guardam quanto nada têm. A miséria vivida. Padecem esquecidos da fortuna. Pagas de passadas vidas. Enterrados seus ouros em cavos fundos no pomar úmido das lágrimas dos espoliados, são os troncos ossos que do solo afloram, braços feito galhos que aos céus erguidos por justiça inda hoje passadas vidas o sumo de suas almas preenchem os tostões, doce mel aprisionado em coriácea casca.
Mordida escorre sumo de mole frialdade; Olga retira-a rápida da boca e da fenda um olho esvaziado exibe indecisa pupila. Vai ao chão, pavimentado de folhas, companhia de muitas outras cascas rompidas.
Sobre esse tapete desfila o Pavão. Meninico imita gracioso o passo'a'passo. Acena-lhe a pena prestes a dar-se.
Olga espanta-se num quase-grito: Horrendos pés.
O Pavão, perfurados olhos, suas unhas bebem-se nos humores hialinos.
: Envergonha-se o pavão à morte, dono de tanta beleza construída sobre aleijão; deliciado discorre Raphael, Olga num trejeito de nojo estudado, escuta: Um monumento faz jus a uma base larga e sólida. Assim, se lhe deve Deus os pés, em seu lugar esculpiu uma base de pedras incultas.
É pavão estátua viva da própria beleza em pedestal feito garras.
Olga ri, e gira ao som do cascalhar. Giram juntos os falsos brilhos tantas voltas seu colar ciranda de pérolas desconhecidas do mar. Seguem seus meneios passos de valsa; não os cabelos curtos como no cinema em ondas marcados; não a saia do vestido justo como no cinema usam-no chinês abertos, para o escândalo, de lado; apenas os pés em valsar passeado delicados sapatos de salto em vidro Olga solta no ar.
Para o pavão é próprio ser agradável de ouvir o canto de quem belas plumas são colírios, diz Raphael e Olga fita o Pavão movimentos lentos. Fascínio a caminhar sobre pedestal ele vem glissando olhos. Ensaia corrida e corre e vôo baixo pousa-o solene divo em tronco de cortiça dourada contínuo de gorovinhas a subir até penugens prenúncio da beleza qu'estendida em arcos sucessivos tem na mata e horizontes por limite o céu em celagem monumental: abre o bico e o encanto se desfaz.
Bruto canto, rudo poema é estrídulo grito, malho em bigorna desafinado apito, risco de prego em granito. Fere tímpanos rasga semblantes té então extasiados em pedaços de caraças e facetados cenhos.
Ele não sabe que desagrada? indaga Olga, unhas cintilantes a premir as têmporas, franjas em arabescos na testa sem franzir, a boca escuro bâton como nas telas estrelas arfam desejos ela estala ui em bico.
Não, prossegue Raphael professoral: ele fecha os olhos para melhor encantar-se de que Deus a ele nada fez faltar; e não vê o nojo nas caras ouvintes estampado.
Olga de novo ri-se.
A seu riso retribui um sorriso a Mãe a fitar Querida na fila de canecas, cinco filhos não me queixo, diz ouvindo o canto do pavão.
Findo o canto, um choro de dor e susto. Aprendendo a andar, curiosa do mundo, a filha mais nova aproxima-se do fogo que entre pedras água s'aferventa em bolhas, e sobre seus pés derrama-se fervura.
Grita horrendo o Pavão, e salto brusco finca os dedos num tronco: é o susto que lhe desdobra a cauda. De pavor arvoredo recua um passo atrás.
Do alto reversa cruz de negra nuvem ao azul esfuma.
Não mais se desprende aura leve brisa do cimo das árvores copadas, sim desinquieta ventania; e ao grito do Pavão continua-se o choro a custo do caçula. Em sobressalto a Mãe Aflita guarda o peito sob a parra. Assopra do filho a boca, úmida e rosa da mamada, agora um filete de azulado afogamento afina os lábios. Cessa a pieira mas resta choramingo enjoado. Não é mais o mesmo filho, pressente a Mãe, confirma sensitivo Raphael, malfeitoria a revelar-se no arvoredo revolto, no odor pútrido do solo alevantado, nas jabuticabas esbulhadas de seus sucos eviscerados olhos rompida casca brilham as iniqüidades; e o Pavão recolhe as penas num chumaço protetor por saber-se fraco frente a tanta ira deflagrada.
Dá pé-de-vento. O chapéu no remoinho.
Coça-se o Pai, primeiro nos braços, esfoliam pele ressequida as desobedientes unhas, estrias sanguinas rasteiros caminhos do desepero, e pênfigos levantam-se bolhosos para rebentados soltarem viscosa molha. Tudo no silêncio cochichado de perguntar à Mãe, meu Deus M'hlia, que será de mim? Um inseto talvez, M'lhes, abelha do mato selvagem ferrão, cura com álcool e logo passa.
Não sabe a Mãe a que acudir: no menor desfigurado o choro, no Pai dolorido a vermelhidão coçeira dos braços atinge o pescoço e levantam-se furúnculos, na menina menor as queimaduras. Raphael presencia com horror a ruína na aura da Mãe as cores antes nítidas geometrias império de borrões, enxame de abomináveis da soledade advindos, malfeito invocado, a crespa do mal pelo vento soprada terra de cemitério e o Pai a crosta pele em arranhões, choraminga o caçula pressentem Raphael e a Mãe, a família não mais a mesma.
Olga, sua calma minha alma, gêmea encarnação de meus anseios.
Do jabuticabal agora pântano lodoso arrebentam-se bolhas trazidas das profundas os vapores fétidos dos que se recusaram invejosos deixar para os vivos as delícias de ter na boca o mel acetinado que Meninico procura, olho na pena da fortuna olho na cerca da fartura a fenda por onde seu corpo de menino cabe entrar. Ao meninico não afeta o miasma asfixia de todos. Corre alegre comunicar ao mais velho a descoberta do tesouro:
Zégarnisé; sussurra, a cerca não é só arame. Mais abaixo hibiscos fazem cerca viva. Para além da bela-emília. Vamos lá.
Zé cuidadoso do irmão não sabe precedê-lo a teimosia por fama. Hoje como nunca sua pele a dor irá sentir, surra de corda para aprender, pagará ,
: Você não, que é muito meninico. Se não houver perigo venho buscar você.
E foi, antes devagar saiu cuidadoso, mais distraído menos teimoso, e maravilhado entre as jabuticabas pretas pavonáceas de bugalhos sacados a sonhada guabirobas no pé verdes ao ponto fez valer a surra de corda à noite cada vergão o veludo no palatável; deixou-se ficar.
: Vamos embora; entrecortada voz diz a Mãe. Reúne todos e sumido garnisé: Joseph! chama o teimoso; mas ninguém sabe que onde ele está é um pomar de delícias a prendê-lo distraído sempre um pouco mais.
Alvoroço na chacra. Todos colocam-se em busca, a chamar. Os Bertazzos, apreensivos que afundado no pomar, incalculável prejuízo, quebram a vigilância da cerca e das penas. E assim, invade o povo a passagem prohibida para alegria maior das almas sofridas garante Raphael, as jabuticabeiras aliviadas de suas seivassugas incitam por aveludadas doçuras fiquem todos sempre um pouco mais.
Coração partido a Mãe quer de volta o filho. O Pai promete, na volta, corda no lombo sentida.
Esquecidos, o Pavão e Meninico entendem-se à maravilha. Num giro de graciosa precisão exibe-se só para ele em belíssimo nunca visto, uma pena destacada da outra rejunta-se em farfalhar de seda, um canto único de afinada carícia e tátil melodia. Solta-se um pena, e ao som cadenciado das plumas flutua fortuna aos pés descalços de Meninico agradecido:
— Para mim?


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Paulino Tarraf
Versão de 30/10/2007 sobre a versão de 04/08/2007 sobre a versão de 07/07/2004 sobre versão de 02/01/2003