Arquivo 09Nona

Conto Romances Arquivo 09


Nona

Conheço minhas gravatas e o nó que num laço faço.
As mulheres, nenhum mistério para mim. Deploro que não haja algum.
Minhas gravatas, seda pura. A ponta um pouco abaixo do umbigo. O nó. Casulo de precisão. Algodão que fosse; não está na seda pura o segredo do nó: na ponta de meus dedos, ágil virar, torcer, ajeitar, e o triângulo encastela-se preciosa gema na gola entreabertos lábios ao fundo oculto botão.
As mulheres. Qualquer mistério. Haja um, e fico feliz.
Nem na lua, mistérios há. Houve tempos de se olhar para ela, lua de baça luz halo prata acolchoada em nuvens, e cismar; abraços namorados; místico sonhar. Chamaram-na Rainha da noite, ingênua reinou; Senhora das marés, nos mares mirou-se. Prata e solitária distante num céu de breu; fria e majestosa envolta em manto estelar. A lua, ébria de poesia, ignorou ser do sol o luzir de seu luar. Um dia, homens, passearemos nela nossos astronautas pés. Nem lunático posso ser.
Crédulas. Você e a lua, mulher.
Nem misteriosa ela, nem você.
Elisa. Atadas as mãos, mordaça, vejo-me em seus olhos de terror.
Desato o nó. E no colarinho dobrado, estreito sulco, alisa-se a seda em vai-e-vem e a quentura adivinhada acaricia-me o pescoço e gosto do perfume que se desloca no ar dos movimentos meus.
Mulher, mistério nenhum.
Em lugar algum. Alhures o comum.
Elisa, a mordaça, acaricia o silêncio o profundo de minha voz.
Aguarda-nos Beethoven, núncio dos Elísios, morada do mistério.
Ligo a victorola. O braço pousa mecânico, a agulha desce no sulco certo. 78 voltas por minuto jorram a sinfonia coral do Beethoven morto há século e tanto e se a esse surdo ouvimos agora é a eletricidade sem mistérios quem nos traz o som. Distorcido, embora. Quem garante ter sido assim outrora concebida quanto agora executada. A qual cantor barítono ou tenor devota você sua atenção e a qual soprano devoto eu e não ouvimos no mesmo tono, principalmente você inundada de tal Pavor.
Ré menor.
Ódio maior.
À Alegria.
Elisa. Se mistério inda algum persiste desvendo agora. Para Elisa. Mistério continuará para mim.
Você crédula mas não eu.
Gira Beethoven tuttipotente orquestral.
A massa sonora freia seu frenesi. Címbalos tímpanos e tambor abrem parêntesis para o cantor que barítono ordena cessar todo antigo som: O Freunde, nicht diese Töne. E conclama os amigos, milhares de milhões, cantarem irmãos a Alegria.
Não faço parte dessa confraternidade. Não eu, Elisa crédula.
Heróis vitoriosos. Sob o manto estrelado todos flutuam irmãos nas suaves asas do maravilhoso. Crédula Elisa. Eu não. Orquestrados eles, a batuta vai Beethoven e os violinos indagam sutis em sibilante espiral suspensa nas cordas mais grossas, cellos e violas para o céu. Retesados os arcos disparam frechas metais tambores trovões e centenas de vozes agudas a despencar graves dos campos elísios gritando todos reunidos numa só alma orando numa única canção amigos em amizade, marido fiel da eterna mulher e logo mais Elisa seus gritos sua alma e a deles uma só.
Alegria, Filha de Eliseu, Alegria. Esses seus olhos de susto nascem de mim. Nascem de minha fúria, Elisa, meu desamor.
É num último sopro que a alma entra no mistério. E dele compartem outras almas, dadas as mãos esperam desatadas as suas, você num grito deixará o mistério só para mim.
Eu comando os laços. E o momento certo decidem meus dedos ágeis espertos a virar e torcer os nós e seus apertos.
Desfaço a mordaça sufoco que a impede de gritar. Mas somente no clímax orquestral coro de milhares de milhões de almas a conclamar por sua alma irmã, filha de Elísio, livre da mordaça agudo dó de peito gritará ascendente aos céus.
Refaço o laço.
Veja, Elisa, a ponta um pouco abaixo do umbigo. A seda sustem a beleza do nó. A maestria é da ponta de meus dedos. Veja a grandeza dos meus gestos, o volteio de minhas mãos e a seda sibila excitada por segundos excitada você, entre sustos não sabe ao certo se no círculo majestoso desse entra e saí um nó de perfeição retangular beijará entre os lábios do colarinho a delicadeza do botão. Confessa, Elisa, é magistral.
Agradecidos seremos um para o outro nesse momento solene.
Incrédulo, eu.
De qualquer paixão.
Sentimentos bons paralelas intenções. Desconfio do amoroso par. Sócios anônimos conjugam-se silenciosos no amoroso par. Eu, meus dedos, minhas mãos.
A ponta um pouco abaixo do umbigo e reta move-se discreta à mais leve torção de meu dorso grácil cetim minhas mãos a sabedoria de meus dedos o nó.
Crédula Elisa.
Mulher, mistério. E você, crédula sempre, sempre ouviu e gostou de mistério ser. E ter: colo de cisne, em pele de alabastro, boca rubi dentes fieira de pérolas carnudos lábios sempre úmidos promessa de delícias e você acreditou ser mulher mistério de cabelos negros como a noite céu picado de diamantino pó descendente em caracóis cada curva um segredo anelado emoldurando insinuantes seios níveos que mal se adivinham sob a camisa de cambraia a descobrir umbigo centro do mundo que malmequer desvertebrado verme expulso desse círculo bem-aventurado onde eleitos cantam Alegria radiante brilho divino.
Crédula Elisa.
Ouça a música e goze a entrada passo a passo nesse Santuário morada do Senhor.
Freude, schöner Götterfunken.
Olhos de Terror. Custa-me crer que são esses os olhos que você devolve à minha fraternal intenção.
Refaço a mordaça.
Desfaço o nó.
A gravata, de meu pescoço para o seu, alabastro cisne e meus dedos ágeis e sábios conhecem o nó de que essa seda é capaz.
Os violinos indagam em pianíssimo suspenso.
Esperemos que o coro esgoele Millionem no esboço orquestral e afrouxo a mordaça para que você grite também.
Agora!
Frenesi.
Grita. Grita mais. Junta a sua à voz de crédulos milhares de milhões.
Novamente o suspenso, amordaço novamente.
Freude, schöner Götterfunken.
Além das estrelas a morada do Senhor.
Não vejo em seus olhos a felicidade radiante.
Meu corpo nu junto ao seu.
O nó corredio na alvura desse colo busca desfazer o mistério que mistério continuará em mim.
Entre meus dedos abrem-se os campos elisianos, confino da Terra, planície do rio oceano. Morada dos deuses, regaço de heróis. É à força que verme entro e tomo posse.
Crédula Elisa.
Ouça a música e contorça o corpo em terror para o gozo meu. Eu, alijado de entre os homens de bem, mas o único para quem o mundo guarda dos mistérios apenas um. Eu sei a ilusão morna que mantém vivos esses heróis e meu gozo é viver no desprazer que todos negam ter.
Se não desfaço a mordaça, apertado o laço, sem a liberdade de seus suspiros será pelas lágrimas o escorrer de sua alma.
Elisa, Beethoven chega ao fim com seus enlevos musicais, mentiras em harmonia. Grandiloqüência suprestelar, é nossa vez, e agora uníssonos a seus desamordaçados gritos a dança circular garante coral sermos todos irmãos.
O laço.
Canta mais.
Silente mistério.
Desliza
o nó.
Há Deus, Elisa?

Gertrudes acorda assustada, procura por Vina em seus pensamentos, limpa o suor filho do sonhoterror e, apressada, a porta do quarto descerrada no leito Vina, como sempre loira e linda, ressona o sono das almas gentis e puras: somente eu tenho em mim a morte para quem amo tanto, pergunta Gertrudes para Julieta decepcionada.
Arquivo 001 de Conto Romances
Paulino Tarraf

Versão 01/01/2008
Versões anteriores
05/03/1999
25/05/1993

Um comentário:

Lucas Alvares disse...

Você é um gênio. Em tudo o que você faz, vejo o que gostaria de fazer se estivesse em seu lugar. Parabéns pela simplicidade dos que constroem sua obra com espantosa facilidade.

Um abraço;

Lucas Alvares